De todas as aspirações da adolescência, a que mais fazia gosto era me tornar violeiro, cantador, repentista, poeta ou cordelista. Inspirado em Zé Limeira, Gregório de Matos, Orides Fontela, Zé Ramalho, Odair Cabeça de Poeta, Caju e Castanha, Belchior, Ednardo e o Pessoal do Ceará, me aventurei no rastro da poesia popular.
Aqui, uma pequena antologia dos meus vinte e poucos, bem antes do mar virar sertão:
MOTE E GLOSA
MOTE:
ENRICOU E NÃO ESTUDOU É DEPUTADO, PRESIDENTE OU SENADOR.
GLOSA:
Falar de política é modo de dizer
Melhor fazer-se mudo
Pra ninguém comprometer
Vai que um dia te acusam cagueta
De quem meteu dinheiro na gaveta
Era uma vez um abelhudo
Que nunca roubou nem uma flor
Eu, pecador, aviso o seguinte
Nesta terra, cada qual com seu andor
ENRICOU E NÃO ESTUDOU É DEPUTADO, PRESIDENTE OU SENADOR
MOTE:
NÃO TEM CU QUE AGUENTE
GLOSA:
Este aviso é bem verdadeiro
De acordo com a situação
Sentar no formigueiro
Pode até ser coisa de valente
A nota de ser um traseiro
Mesmo de grandes dimensões
De amortecer um coice
Qual um travesseiro quente
Dependendo da dotação
NÃO TEM CU QUE AGUENTE
MOTE:
NASCIDO E CRIADO NO RIO DE JANEIRO
GLOSA:
Eu não sou daqui
Cheguei mal acabado
Neste lugar
O que me faz pensar
Esta cidade me pariu
Copacabana foi meu berço
E se hoje ando inzoneiro
Não é mera aparência
Meu coração foi moldado
NASCIDO E CRIADO NO RIO DE JANEIRO
MOTE:
ENTRE PUTAS E POMBOS
GLOSA:
“O homem degrada o álcool
E não o álcool degrada o homem.” Assim dizia Chatterton
Aforismo pungente
Que serve a muita gente
Do mais imprevisível
Até o mais canônico
Do Oriente ao Ocidente
A esbórnia sempre acaba
ENTRE PUTAS E POMBOS
PELEJAS IMAGINÁRIAS:
CARTEIRA, RELÓGIO E CHAVE
CARTEIRA:
Minha vida é um desmazelo
Onde não me falta aborrecimento
Se estou gorda e cheia
Regenero qualquer avarento
Magra e sem papada
A discórdia aumenta no lar
O dinheiro se reduz
Viro bicho peçonhento
Parece até que jogei
Um monte de pedra na cruz
RELÓGIO:
Carteira, minha irmã,
Depois de ouvir o seu lamento
Não quis dar muita corda
Fiz questão de permanecer isento
E depois de uma hora
Eu quase perco o pulso
Pois entre os homens,
Também acusam-me de tudo:
Que sou cheio de nove horas, estraga-prazeres
e de só pensar no amanhã
CHAVE:
Nada mais me entristece
Quando a vida me oferece
A oportunidade de ver,
Presa a um chaveiro,
Um sonho se acabar
Trocar a fechadura
Para viver em cativeiro
Ou na clausura
Da eterna jura
De nunca mais amar
LINHAS QUE POSSO TER ESCRITO E PERDIDO
Lua Branca
Uma valsa
Chuva rápida
Outra epidemia
Alguma dúvida
Tardes acesas
A rua incerta
O silêncio de um cão Folhas esparsas
E um enredo:
Escrever para sempre