Dias assim. Assim assim. Como naquele dia em que te contei que fui ao cinema assistir o filme do Bob Dylan num trânsito ferrado e o motorista matutou, antes de tomar uma fechada do ônibus, “Hoje tá fácil. Ontem tava pior.”
Dias assim, equilibrando com graça a cinza do cigarrinho manufaturado pra não se mover do sofá até o cinzeiro e assim desfazer a pose que levou um tempinho pra ficar confortável e permanecer de olho na série em plano sequência.
Dias assim aguardando um diploma, um chamado, um beijo de filha, um exame, algum resultado. Dias assim escrevendo, rimando, sobrevivendo, vivão e vivendo.
Outras Considerações no ar! Nessa edição você vai encontrar a cinebio de Bob Dylan que vi momentos antes de sair de cartaz, mais uma resenha sobre a série que todo mundo tá falando e o reencontro com as invenções poéticas de Capinan.
Enjoy!
1 - Um Completo Desconhecido
Esta semana, por coincidência, no mesmo dia em que o inominável virou réu por tentativa de golpe de Estado, em uma comemoração involuntária, assisti a Um Completo Desconhecido (A Complete Unknown, 2024), dirigido por James Mangold. Como já sabemos, a cinebiografia de Bob Dylan, estrelada por Timothée Chalamet. O filme é uma imersão nos primeiros anos da carreira do músico, desde sua chegada a Nova York em 1961 até a polêmica apresentação no Festival de Newport em 1965.
Não sei quanto a você, ledor, mas geralmente, filmes biográficos me despertam uma mistura, um smoothie de emoções: curiosidade sobre a ambientação da época, receio de caracterizações e figurinos que poderiam ser de um baile de carnaval, aquela apreensão se o retratado em questão será uma sequência de fotos icônicas em movimento ou, o pior cenário possível diante de uma obra de arte: vergonha alheia.
No caso do Dylan, um artista multifacetado com mais de seis décadas de carreira e 55 álbuns lançados, cada fase de sua trajetória renderia um filme ou um documentário. Mais ou menos como em I'm Not There (Não Estou Lá) de 2007. O diretor Todd Haynes, de um jeito nada convencional, optou por fragmentar Dylan em seis personagens, interpretados por diferentes atores, cada um representando uma faceta de sua persona artística. Cate Blanchett, por exemplo, brilhou muito encarnando o Dylan na fase elétrica, que lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Veneza.
Enquanto o filme de Haynes celebra a multiplicidade e o mistério que cercam Dylan, o de Mangold busca uma coerência que, paradoxalmente, simplifica a complexidade do artista. O destaque do filme é Chalamet incorporando Dylan com precisão nos trejeitos e na transição dele do folk acústico para o rock elétrico chocando a sociedade no Festival de Newport.
Clássicos como "Blowin' in the Wind", "The Times They Are a-Changin'" e "Like a Rolling Stone" entre muitos outros são apresentados e refletem a evolução musical e lírica de Dylan. Confesso que sou um pouco ciumento em relação a essas músicas. Por já ter ouvido tanto em vários momentos da vida, acredito piamente que são minhas e, é óbeveo (minha imitação de Maluf), me decepciono com o jeito que são mostradas, como se fosse um dever de casa pra toda turma ouvir. Porém, as performances musicais são integradas à narrativa e tá tudo certo.
Edward Norton como Pete Seeger, Monica Barbaro como Joan Baez e Elle Fanning no papel de Sylvie Russo, uma representação ficcional da primeira namorada de Dylan estão incríveis como elenco de apoio. Norton retrata Seeger como um mentor que, embora apoie Dylan, enfrenta um choque geracional devido às inovações musicais do jovem artista. Barbaro, por sua vez, apresenta uma Joan Baez carismática, evidenciando a dinâmica complexa entre ela e Dylan.
No entanto, apesar do hipnotizante Chalamet, o filme peca por não aprofundar as motivações, os conflitos com a imprensa — conforme mudam os rumos da música e da carreira — além do uso de maconha e LSD por Dylan (e por todo aquele que minimamente viveu nos anos 60), deixando aquela sensação de que estamos assistindo, esparramados no sofá de casa, nada mais que uma boa sessão da tarde.
2 - Adolescência
Difícil falar o que já não foi falado sobre essa série que virou o nosso talk of the town da vez. Se até o primeiro ministro do Reino Unido, Keir Stamer, em um pronunciamento no parlamento, apoia que a série deveria ser exibida em escolas, então o que mais, caríssimo ledor, essa humilde newsletter tem a acrescentar sobre o assunto? Vou tentar.
Adolescência, minissérie britânica da Netflix criada por Jack Thorne e Stephen Graham, que também protagoniza a série, foge do suspense fácil ou do melodrama sensacionalista. A escolha por mostrar o crime logo no início surpreende, e o que nos causa em seguida é uma reflexão angustiante sobre culpa, abandono e masculinidade tóxica.
Cada personagem está lidando com sua parcela de dor, dúvida e impotência, o que confere mais força para o eixo dramático da trama na relação entre pai, filho e coadjuvantes, como Erin Doherty, no papel da psicóloga forense. A série não procura vilões e evita julgamentos simplistas.
É sobre isso. Diálogo, falência dos vínculos e uma sociedade que não sabe mais como acolher os mais jovens perdidos em algoritmos de ódio. Poderia ser um documentário e, às vezes, se aproxima disso com a câmera que observa tudo, mas é ficção, um espelho desconfortável com o propósito narrativo de nos deixar presos, em acompanhar as emoções dos personagens em tempo real e, de alguma forma, buscar a inocência para Jamie e para a nossa própria consciência.
3 - Capinan
Foi num evento realizado na Livraria da Travessa em Botafogo, Rio de Janeiro, chamado Clube de Leitura - Círculo de Poemas, mediado por Claudia Lamego e Leonardo Marona que me reencontrei com a poesia de meu ídolo da juventude, José Carlos Capinan.
Os versos de Capinan atravessam décadas, mais de 60 anos de um trabalho artístico entre livros de poesia e canções emblemáticas musicadas por Edu Lobo (Jangada, Ponteio), Gil (Viramundo), Paulinho da Viola (Vinhos Finos Cristais), Jards Macalé (Farinha do Desprezo, Movimento dos Barcos, 78 Rotações), Geraldo Azevedo (Moça Bonita), João Bosco (Papel Machê), Moraes Moreira (Cidadão), entre outros.
O ato de ler e ouvir esses versos acompanhados por conhecidos e desconhecidos me transportou para um lugar de espanto e memória que só a poesia pode causar.
Canção de minha descoberta
Fugi de tudo que fui / E pelo caminho de minha renúncia / Venho buscar bandeiras novas
Agora persigo a palavra nova / Por eles que esperam com o coração amargo / E o grito dentro do coração
Não poderei aceitar o silêncio / E ficar em paz com a morte dos desgraçados / Caídos sem voz a nossa porta
As crianças minhas morreram todas / Possuo em cada vontade, cada medo, cada ternura morta / E vou surgindo novo entre lenços brancos / Agitados de dor pela mão dos homens
Caro ledor, sei que ainda faltam 365 dias para o Carnaval, porém, vou me adiantar e me apropriar culturalmente da tão famosa marchinha "Ei, você aí, me dá um dinheiro aí" e considere passar para a versão paga (10 reais mês/50 ano). Beyjas e até o próximo domingo!