O título dessa edição se refere a um poema de Álvaro de Campos, heterônimo do poeta Fernando Pessoa. No original:
Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas
Também escrevi em meu tempo cartas de amor. Como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas.
Como o atento ledor já deve ter notado, substituí “cartas de amor” por “playlist”, a fita k7 ou CD personalizado da era digital. Aqui não se trata de uma tentativa de atualizar um poema de 1915, mas sim refletir sobre a natureza desse amor. Criar uma playlist não é tão diferente de se dedicar a um amor romântico. Dá trabalho. Não é só juntar um monte de músicas, é pensar na ordem de cada faixa. Exige tempo, escuta, edição. Como quem escreve e escolhe cada palavra em uma carta de amor.
Estou no ramo da cultura das playlists, desde os tempos da fita, nos anos 80. Basicamente, as tinha organizadas por gênero, estado de espírito, atividades extra curriculares como malhar na academia e também lazer, como viagem com os amigos.
No quesito gravar músicas da rádio, só mesmo por amor eu fincava os dedos no play/rec e pause do meu 3 em 1 da Gradiente, gravando em k7, toda e qualquer música. Especialmente quando parava no dial 94,9 MHz, a Rádio Fluminense FM. A “Maldita”. A primeira e única em Rock and Roll.
Essa semana, morreu, aos 70 anos, seu fundador, Luiz Antonio Mello, o LAM. Sua história inspirou o filme Aumenta Que É Rock'n Roll (2024), dirigido por Tomás Portella, estrelado por Johnny Massaro e roteiro de L.G. Bayão. História que já foi contada pelo próprio LAM no livro “Onda Maldita” (1992) sobre os bastidores da Flu.
Às segundas e sextas, quem comandava a frequência era Maurício Valadares e Liliane Yusim com Rock Alive. Nas terças, entrava no ar O Assunto é Jazz, com Luiz Carlos Antunes. O Módulo Especial tocava meia hora do mesmo artista. O Guitarras, era dedicado ao heavy metal. Rock Twist, era um programa de punk e new wave.
A programação diária era sempre uma surpresa. Era possível ouvir clássicos e lados “B” de Led Zeppelin, The Who, Rolling Stones e Black Sabbath. A rádio ainda foi pioneira por colocar no ar um time de locutoras formado exclusivamente por mulheres: Selma Boiron, Silvia Vieira, Mylena Ciribelli e Monika Venerabile.
Mas foi no programa Espaço Aberto, dedicado às bandas novas do rock nacional e da MPB que ouvi, pela primeira vez, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Blitz, Lobão, Barão Vermelho, Plebe Rude, Saara Saara, Fellini e tantos outros. Tudo em perfeita simbiose: primeiro na rádio, depois ao vivo no palco do Circo Voador.
Naquela época, a maioria das mixtapes em que eu me empenhava de corpo e alma era para uso próprio. Ouvir e reouvir até a fita embolar e se desfazer. Outras nasceram de pura fruição e acabaram virando presentes, agrados, mimos carinhosos para certas pessoas. Algumas foram meticulosamente planejadas, com faixas escolhidas a dedo para as insuperáveis “Festas de Fita”. Embora raramente passassem da segunda música antes de serem abruptamente retiradas do toca-fitas. Afinal, ninguém estava lá muito interessado em ouvir a demo de “Núcleo Base”, do Ira!. Sempre surgia algum incauto com uma fita do Rick Astley, pronto para arruinar o sonho do pequeno DJ.
Hoje, qualquer um pode ter a própria rádio ao alcance dos dedos. A playlist virou uma coleção de músicas, podcasts entre outros conteúdos de áudio e vídeo. Como já sabemos, na era pré-internet, o combo de música, informação e surpresas que só o rádio proporcionava, agora quem faz é você.
Foi nesse mar de possibilidades que me deparei com uma experiência auditiva bem gratificante, o podcast One Song, apresentado por Diallo Riddle e Blake "LUXXURY" Robin. Uma celebração do pop.
Em cada episódio, One Song mergulha em uma única faixa e investiga suas origens, influências e impacto cultural. Diallo Riddle conduz a conversa com humor e informação, enquanto LUXXURY, produtor musical e TikToker, nos apresenta os insights técnicos.
Recomendo os episódios de “Kool Thing” do Sonic Youth, "Everybody Loves The Sunshine" de Roy Ayers, "You Don't Love Me (No, No, No)" de Dawn Penn e "London Calling" do The Clash.
Imagino um podcast no mesmo formato com clássicos da MPB. Como não posso me furtar a mais uma playlist, aqui vai uma bem ridícula e com todo amor pra você, ledor:
Ridículo mesmo está a versão paga de Outras Considerações (10 / 50 reais). Considere. De onde veio essa, vem muito mais por aí. Até o próximo Domingo!