Acredito que já tenha passado na cabeça de qualquer escritor, logo em suas primeiras e mal traçadas linhas, escrever como Jorge Luis Borges. Perdão, vou reformular. Desde o dia em que me aventurei a escrever, eu quis ser uma espécie de médium da escrita borgeana e de seus personagens. Queria ser o copista do copista. Receber o espírito de Pierre Menard, ser o cavalo de Dom Isidro Parodi ou tão somente o papel carbono de Bustos Domecq, já me daria por satisfeito.
O texto a seguir é mais uma dessas tentativas.
1.
Dizem que um escritor só se torna escritor depois que escreve a sua biografia. Eu prefiro decifrar os sinais inconscientes. Sem me prender tão somente a eles. Buscar palavras que uma vez agrupadas, comuniquem alguma coisa. Longe de ser uma receita, perseguir sonhos e memórias é o meu desafogo.
“Há duas sortes de dragões: os do pântano e os da montanha. Os do pântano tem as costas em forma de serra. Os dragões da montanha tem as escamas de cor dourada.”, “Um dia, nóis estava na lavoura, pra ganhar algum dinheiro. Urutu tava na moita e picou meu companheiro.” , “O que nos prende ao solo da pátria é a magia das lembranças.” Essas eram algumas frases e lendas contadas em casa, nas noites de solidão da infância, por meu tataravô Filomeno Aganju. O popular, Filó. Ancestral divinizado, compadre de todos. Mestre em benzedura, curava quebranto, tosse e queimadura.
Foi justamente num sonho que Filó me falou:
“Eis que me encontrei deitado no corredor de uma casa desconhecida, no meio da noite, sem as calças. Teria isso algo de sensual e até lúbrico, certo? Mas isso não é nem de longe a coisa mais estranha.
Não estava com vontade de dormir, mas também não estava com vontade de me levantar, portanto fiquei quebrando a cabeça: levantar, dormir, continuar deitado. Não sabia o que fazer, mas também não estava com vontade de voltar para a cama. Cousa de doudo ou não, o fato é significativo.
Percorri a sala, escrevi “Volto já” em um pedaço de papel e lá deixei. Depois disso, acordei em meu quarto com o mesmo bilhete ao lado da cama. Escrevi sonhando, sonhei escrever ou fui apenas a testemunha de um eco, de um duplo de mim mesmo que também sonha? E também escreve? O fato é que o bilhete existe. E não sofro de sonambulismo.
A lembrança dos nossos sonhos geralmente costuma nos trair, por isso, acredito que deve ter mais caroço nesse angu.”
Tomou mais um copo e dormiu ali mesmo, na mesa do bar.
2.
Lembrei da casa dos meus pais como uma dessas melodias que a gente inventa sozinho. Estava no quarto deles vasculhando o legado de meu tataravô Filomeno Aganju que pode ser resumido em: compilados de um século e meio de mitos (iorubás, samoiedos, gregos e indianos), um número incalculável de cantigas de candomblé e pontos de umbanda, antigos sistemas de compreensão do universo a partir das cartas do Tarô, além da catalogação de plantas e insetos não identificados.
“Aprender a nascer. Aprender a Morrer. É a ginástica da eternidade.” Abri um de seus inúmeros cadernos. Ele brincava com essa idéia. Ser só, sem bens, sem nenhum dos benefícios de uma cultura. “Estou levando uma vidinha mansa. Nas redondezas do Largo todos os dias. Procurando por meu pai que eu jamais conheci.”
Filó costumava dizer que basta olhar ao redor, perceber o mundo a nossa volta e depois transcrever o que viu ou sentiu. Conversas alheias podem se transformar em excelentes crônicas para quem sabe observar.
3.
Começou a chover e um estranho silêncio se fez ou apenas parei de pensar, eu acho. Corri atabalhoadamente, mesmo sabendo que esta não é nem de longe uma de minhas palavras favoritas e como esta vida não está sopa, eu não estava nem um pouco interessado em ficar ensopado.
Procurei abrigo na Igreja do Largo mas o padre, com um dragão das montanhas tatuado no braço, me expulsou aos gritos: “Fora daqui, homem de pouca fé!”
Retruquei: “Padre! Sou batizado, crismado e cismado nos mistérios da santíssima trindade, acredito em pré destinação e no livre arbítrio ao mesmo tempo, acredito que Deus é um poeta e que sua epopéia imortal está escrita nas estrelas, sei que existe um segredo formidável, simples como tudo que é grande e que tudo está contido em uma só palavra que está no Tetragrama dos Hebreus, no Azoth dos alquimistas, no Tarô dos Cabalistas e nas rezas do Omolokô, acredito também que o amor é uma chave poderosa pois exprime ao mesmo tempo, uma ação e uma paixão, um vácuo e uma plenitude, uma flecha e uma ferida e acho que já falei demais. Posso entrar? Tá a maior chuva.”
O padre entregou-me um cartão e disse: “Nananina. Tome aqui. É o celular do meu psiquiatra. Vai pra casa meu filho, tá perdoado! Agora dá licença que tá na hora da novela, quer dizer, novena!”
Cheguei em casa cansado demais para escrever qualquer palavra. Nem consegui chegar no quarto e adormeci ali mesmo, sem as calças, no corredor.
Atenção! Teaser!
Na versão paga de Outras Considerações você vai encontrar…
Diz a lenda que, em Nova York, Ryuichi Sakamoto almoçava todos os dias no “Kajitsu”. Até um dia em que chegou para o dono e disse que adorava a comida mas a trilha sonora ambiente era péssima: “Chega de Peter Cetera e Patience do Guns!” em seguida perguntou se ele mesmo poderia fazer uma playlist exclusiva para o restaurante….
Quer saber o final dessa história? Assinaí, fi.