Caro ledor, como sabemos, essa semana se foi o diretor, escritor, criador de mundos e sonhos David Lynch. Minha admiração vem desde a adolescência tenaz, época de Eraserhead (1977), Homem Elefante (1980), Veludo Azul (1986) e a versão dele para Duna (1984) eram finos VHS, jóias do cinema independente reluzindo nas locadoras.
Depois foi o equilíbrio entre o grotesco e o sublime de Coração Selvagem (1990), Twin Peaks (1991), Estrada Perdida (1997) e Império dos Sonhos (2006) que moldaram o caráter e a crônica Copacabana Twin Peaks no especial dessa semana.
E mais, uma playlist, ou melhor, uma PlayLynch, como queira, com o melhor de Angelo Badalamenti para os filmes de você sabe quem.
Outras Considerações no ar, vai que é tua!
1 - Copacabana Twin Peaks
Faz um calor anormal, Diane. O tema de amor de Laura Palmer estronda no fone enquanto caminho por Copacabana Twin Peaks e entro nas Lojas Americanas. O que me até trouxe aqui, Diane? Certamente o ar condicionado. Além disso, um desaparecimento. Não de uma pessoa, mas de algo igualmente intrigante: a última fatia da torta de cereja caseira da Baalbeck.
Agente Dale Cooper, investigador e entusiasta da culinária simples. Minha base de operações é a Galeria Menescal, meu Black Lodge. Observo, de longe, o Cooper Maligno, o Homem de Outro Lugar e o Gigante dividindo um Hareburguer. Tenho certeza de que esse lugar conecta dimensões, Diane.
No quiosque Double R Dinner, o vai e vem da praia. A tia de cabelo azul-lilás pratica yoga na areia, o Guarda Municipal troca ideia com o amigo da lupa maneira. Lula Pace Fortune vende pulseiras e colares de conchas. Sailor Ripley está logo atrás dela. Veste uma regata com estampa de Elvis. Ambos parecem estar fugindo de algo — ou de alguém. Enquanto Bobby Peru controla o estacionamento da orla com ferocidade.
Laura Palmer surge ao meu lado, de maiô vermelho. Antes que eu possa perguntar algo, ela desaparece na multidão de vendedores de mate e biscoito Globo. "Dale, chegou mais um bilhete." Norma Maria, a dona do quiosque, me entrega um pedaço de papel com letras recortadas de revista: “A última fatia da torta está comigo. Encontre-me no Calçadão às 22h.” Acho que temos uma pista, Diane.
O calçadão agora é um mar de sombras. Frank Booth surge do nada e me encara, rindo. "Você acha que pode resolver tudo, Cooper? Até tortas desaparecidas? Este é meu jogo agora." Ele saca sua máscara de gás, inspira e expira lentamente e, tomado por algo maior do que ele mesmo, silencia. Seus olhos, envenenados de raiva, agora vacilam. Sem dizer palavra, ele coloca uma fatia de torta de cereja em minhas mãos e desaparece por entre os coqueiros.
Volto ao quiosque e Norma Maria me recebe com um sorriso tranquilo. Observo a noite se dissolver no murmúrio das ondas. Diane, se você estiver ouvindo, registre isso: há forças neste mundo que ultrapassam os limites do entendimento. É no ato de compartilhar uma fatia de torta de cereja que sua vida pode mudar, Diane. Até breve.
2 - PlayLynch
A colaboração de mais de 30 anos, entre Angelo Badalamenti (1937-2022) e David Lynch teve início em Veludo Azul, quando Lynch convidou o compositor para ajudar a atriz Isabella Rossellini interpretar a música "Blue Velvet", fundamental para o filme. Impressionado com a sensibilidade musical de Badalamenti, Lynch o encarregou de compor toda a trilha sonora.
Mas, como já sabemos, foi com Twin Peaks que os dois bruxões voaram. Badalamenti compôs o tema da série - Grammy de Melhor Composição Instrumental Pop - e a trilha sonora, de melodias simples e evocativas, tornou-se um elemento tão importante quanto os próprios personagens.
Um aspecto singular da colaboração foi o método de trabalho. Lynch frequentemente descrevia atmosferas, sentimentos ou imagens abstratas para Badalamenti em vez de instruções musicais diretas. Essa abordagem permitiu ao compositor criar peças que eram verdadeiras traduções sonoras do universo de Lynch. Um exemplo famoso é a criação do tema de Laura Palmer em Twin Peaks. Lynch pediu a Badalamenti para imaginar uma garota bonita e cheia de segredos caminhando para um destino sombrio.