Rio, 60 graus. Enquanto esperava o sinal abrir, escorre aquele pingo de suor da testa e vai até o olho direito. Um carro atravessa a faixa, o motorista abre a janela e pergunta: “Amizades, aqui é Catete ou Flamengo?” Enxuguei o suor do rosto e levei um tempo até entender que era comigo. Achei graça da pergunta insólita e, tentando achar o foco, respondi num átimo: “Laranjeiras!” O sujeito fez uma cara de decepção “Não acertei uma, né?” e arrancou. Me apraz em saber que existe gente mais perdida que eu. O sinal abriu. Estufei o peito e, orgulhoso, fui buscar Helena na escola.
No fone, estrondava o proto-punk de Patti Smith que, como sabemos, desmaiou no palco no mês passado, em São Paulo. Ela não terminou o show e cancelou uma segunda apresentação. O que deixou alguns amigos bem frustrados por conta da enxaqueca da musa.
Porém, sem trocadilhos, Patti é dura na queda e essa semana ela anunciou uma turnê comemorativa dos 50 anos de lançamento de seu primeiro e fundamental álbum Horses, produzido por John Cale e linda capa de Robert Mapplethorpe. Procure saber.
Outras Considerações dessa semana é sobre isso e mais: o documentário Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, de Pedro Bronz, agora em cartaz na Netflix e se já falei de Acelero, novo álbum do Crizin da Z.O., vou falar de novo porque sim.
Enjoy!
1 - Horses
Jesus Morreu pelos pecados de outras pessoas, não os meus
Com essa frase, Patti Smith abre o disco e depois emenda com a reinterpretação furiosa de “Gloria: In Excelsis Deo”, hit do Them/Van Morrison.
Como é bem sabido, o ano era 1975, no meio da ressaca hippie e o fim da Guerra do Vietnã. Por aqui, a ditadura militar ainda grassava sob as rédeas do General Ernesto Geisel e as contradições do “Milagre Econômico”.
Mesmo conturbado, foi um ano de grandes lançamentos: Refazenda, do Gil; Lugar Comum do João Donato; Gil & Jorge, Solta o Pavão do Jorge Ben, Minas do Milton, Joia e Qualquer Coisa do Caetano, o belíssimo Africanto dos Tincoãs, Blood On The Tracks do Dylan, Sabotage, do Sabbath, A Night At The Opera do Queen (sim, o que tem “Bohemian Rhapsody”), Wish You Were Here do Pink Floyd, Physical Graffiti do Led Zep, o hitaço “Moça” do Wando e, claro, o assunto de hoje, Horses da Patti Smith.
São oito faixas de um disco que podemos classificar de “entre”. Entre uma devoção a geração passada - Jim Morrison, Bob Dylan e Jimi Hendrix - e uma revolução que só uma jovem punk que gostava de escrever, ler Rimbaud e ouvir Velvet Underground enquanto trabalhava em cafés e livrarias pra ganhar algum dinheiro, poderia causar.
A combinação de música, literatura, performance e liberdade artística ecoa até hoje. Qual não foi minha surpresa quando Redondo Beach, toca em “Dias Perfeitos”, do Win Wenders. Aquele reggaezinho dramático e a dedicação do senhor Hirayama em deixar banheiros públicos um brinco, me fez verter lágrimas sem pensar.
Horses continua sendo fonte de inspiração para riot grrrls, góticos, roqueiros e punks em geral. Mas, como estamos em um espaço que valoriza a leitura, não posso deixar de mencionar um presente para o leitor mais dedicado, que já deve saber que Patti Smith transcende sua carreira musical com dois livros marcantes: Só Garotos (Just Kids) e Linha M (M Train).
O primeiro detalha sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, durante os anos 1960 e 1970, quando ambos viviam em Nova York e ainda eram jovens aspirantes a artistas. O relato ganha um tom ainda mais emocionante pelo fato de Patti ter prometido a Robert que escreveria um livro sobre a história dos dois pouco antes de sua morte — o que resultou em Só Garotos (Just Kids).
Linha M são as memórias da querida em pequenos relatos que mesclam referências à literatura, fotografias da própria autora e experiências do dia a dia, pontuadas por alguns litros de café. Um livro mais contemplativo que ressalta a habilidade de Smith em encontrar beleza e significado no ordinário.
Enquanto releio os dois ao mesmo tempo, sigo no aguardo de que a turnê de Horses dê as caras por aqui. Só espero não desmaiar, não de enxaqueca mas de emoção.
2 - Andança
Rio, 70 graus. Na prática, não sou, nunca fui e nem pretendo ser o mais dedicado dos foliões. Porém, em tese, me chama pra uma masterclass do Luiz Antonio Simas e lá estarei. Manda DM pra uma mesa redonda com Milton Cunha, Pretinho da Serrinha e Lira Neto que eu já to chamando o uber. Tenho um encantamento por saber das memórias, das histórias, da origem, de onde emana a fonte em que beberam os ídolos dos meus ídolos. Nessa hora, encosta o Caboclo Juremeiro Pesquisador. Ele acende um charuto, dá um pito, um passe, uma reza, joga no Google e faz o carnaval.
Nesse espírito, recomendo fortemente o livro Carlos Vergara e Cacique de Ramos Carnaval-Ritual, de Maurício Barros de Castro, que explora a relação entre o artista plástico Carlos Vergara e o bloco carnavalesco Cacique de Ramos nos anos 1970.
Vergara, expoente da Nova Figuração — movimento artístico que defendia um diálogo com a cultura popular, sem cair no viés panfletário — direcionou suas lentes para o carnaval de rua do Rio de Janeiro, registrando a energia e a estética do Cacique por meio da fotografia. A obra em si, como já sabe o fino ledor, não se limita ao mero registro da festa: Vergara criou imagens que combinavam ângulos inesperados, sobreposições e recortes, acentuando o caráter performático do evento e resultando na transposição estética do bloco e de toda potência do carnaval para o universo das artes visuais. Relíquia da arte contemporânea brasileira.
Em 1972, Carlos Vergara organizou uma coletiva no MAM-RJ para apresentar essas imagens pela primeira vez. O evento reuniu trabalhos de Hélio Oiticica, Waly Salomão, Ivan Cardoso e Caetano Veloso, mas foi bruscamente fechado pela repressão da ditadura militar.
Por falar em carnaval, Cacique, história do samba e para quem quiser quebrar nas ideia ou cair na folia com propriedade, summa cum laude, faça um favor a si mesmo, mime-se e assista Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, na Netflix.
Chorei no cinema, chorei em casa e, provavelmente, vou chorar toda vez que assistir. Dirigido por Pedro Bronz, o filme é um primor de documentário. Construído a partir de aproximadamente 800 fitas VHS, registros em Super-8, Mini-DV, fitas cassete e fotografias. 2 mil horas de material. Registros feitos pela própria Beth Carvalho ou por seu motorista e assistente, Antônio Carlos, ao longo de seus 53 anos de carreira. Apogeu e glória do Caboclo Juremeiro Pesquisador.
Mermaum, a estrutura narrativa é totalmente composta por essas imagens, sem depoimentos contemporâneos “legitimando” o que se vê. É a própria Beth quem nos conduz pelos caminhos do samba, da beleza e da justiça. Encontros com Nelson Cavaquinho, Cartola, Monarco, versões “demo” de “Folhas Secas”, “O Mundo É Um Moinho” e “As Rosas Não Falam”. Eu ouvi amém, igreja?
O elo narrativo com o já citado livro do Maurício Barros de Castro, é a sequência do filme que mostra a imersão da cantora nas rodas de samba do Cacique de Ramos, onde conheceu e incentivou artistas como Jorge Aragão, Almir Guineto e Zeca Pagodinho. Momento 10 de 10 vai para uma apresentação de Beth Carvalho e Fundo de Quintal na Estação do Metrô da Carioca (!), onde ela e Jorge Aragão apresentam, pela primeira vez e ainda lendo a letra de “Coisa de Pele”. É por demais forte simbolicamente para eu não me abalar.
Além da contribuição musical de Beth Carvalho, o filme enfatiza também seu ativismo político na luta pela valorização de músicos e compositores e nos comícios pelas “Diretas, Já” sua proximidade com Lula e Brizola. Você pode dizer ah num sei que lá a qualidade técnica das imagens varia. Sim, pode. Mas é justamente o que confere autenticidade ao filme. A trajetória de uma inimiga do fim, uma jornada de força, resiliência, compromisso com os fãs e a música até sua última quarta-feira de cinzas.
Chora, não vou ligar.
3 - Acelero
Rio, mil graus. Já faz um tempo, mas ainda sigo impactado pelo show do Crizin da Z.O. no Circo Voador. O projeto, formado pelos cariocas Cris Onofre e Danilo Machado, junto ao paranaense Marcelo Fiedler, trouxe ao palco a energia e a lírica carioca afiada que fazem de Acelero um disco tão marcante.
Tenho ouvido tanto suas músicas que, em momentos inesperados, acabo soltando frases que parecem encaixar perfeitamente na situação. Na terapia, por exemplo, me pego dizendo: "Ando calmo, apesar de tudo", "Às vezes, não tô bolado, tô só pensando", "Marolei, dormi profundo", "Tem bad que é diferente", ou ainda "Ando pensando muito em território. Como eu me comporto em cada território."
Bom de ouvir na rua, no ônibus, sempre em movimento. No metrô eu recomendo a urgentíssima “Demônio do Rio da Prata”, combina com a velocidade do trem. Aliás, essa semana, coincidentemente, estarei na Zona Oeste. Sabe qual vai ser a trilha?