Bem-vindos à mais uma edição literária de Outras Considerações. Idealizada naqueles pique de absoluta falta de tempo para escrever sobre qualquer outro assunto, revisitei e retrabalhei textos e poemas originalmente escritos em 2010.
Mais do que um exercício de atualização, esta curadoria é um convite à reflexão enquanto se faz um tratamento de canal, uma mini crônica sobre adolescência e o reencontro com alguns versos que, sem muita certeza, podem ter sido roubados.
Bom domingo e boa leitura!
1. Reflexões na cadeira do dentista
Assim. Assado. Assaz. Vivaz. Contumaz. Audaz. Tenaz. Preto. Branco. Vermelho. Uma carta. Um carro. Um retrato. Repolho. Panqueca. Um parágrafo de Campos de Carvalho. O Púcaro Búlgaro. A Bulgária existe? Ui. Fudeu. Bateu na trave entrou no teu. Teu cu é meu. Teu cu é nosso. Boa dia Quinta Série B. Dotô, já tá pa base de uns vinte minutos no mesmo dente. Deve ser um recorde.
— Vira pra cá. Fecha um pouco a boca. Obrigado.
Lembrei do poema da Peri Rossi que você me apresentou Saímos do amor como de um acidente aéreo. Aquele dia na grama do Aterro sob o céu. Observando hipócritas disfarçados rondando ao redor. Alguém consegue organizar a vida na cadeira do dentista? Porra de barulho chato. Devo tá umas duas horas de boca aberta. Só fiquei assim uma vez. E foi por você gata. Ugh! Tem um tártaro apegado aí, hein, Dotô. Ou melhor, Cálculo. Agora diz-se Cálculo. Porque não. Porque sim.
— Relaxa o lábio. Isso. Bota a língua pro outro lado. Abre mais a boca.
Aiu. Iau. Lá-rá-ri Lá-rá-rá. Preciso ir ao banheiro. Run to the Hills. The hills are alive. The hills have eyes. Comprar ramos de trigo e uma pemba. Filho de pemba trupica mas não cai. Que nem esse dente aí, né Doutor? Tô no dentista ou sonhando que tô no dentista? Quem sou eu? Onde é que eu tô? Eu sei nadar?
— Pronto, acabou. Pode levantar.
2. Álibi
Todos os dias por volta de sete horas da noite, subia pela janela do sétimo andar um cheiro de incenso. Lavanda, Masala, ou Gleid Sachê. O álibi perfeito pra bolar um novo ou acender a ponta da noite anterior e não despertar suspeitas dos vizinhos.
Subir no teto do prédio e observar de lá a cidade. Luzes ao longe, automóveis. Quando a vida se resumia em comer coxinha no Fornalha, alugar sete filmes VHS por semana. Assistir, rebobinar, devolver. Os amigos do prédio da frente. A turma da rua.
Contar uns trocados pra ir ao show, qualquer show, sem saber como voltar. Às vezes sem saber como ir. O flagrante malocado na meia, na cueca, no bolso, foda-se.
A vida intensa e dispersa.
Escrever é bom mas, na maioria das vezes, na grande e imensa maioria das vezes, é barril dobrado. Considere passar para a versão paga clicando no botão abaixo
3. Alguma poesia
O chão da casa
é frio como é frio o morto como é frio o pai como é frio o mês de maio em alfa-centauro
aquele chão gelou meus pés como onda que cai na areia feito um livro que se fecha rapidamente ou porta que bate com o vento
e ela era feliz viva demais para aquele chão e o que ficou presentes de casamento roupas velhas fotografias fitas de vídeo inventário de folias
Previsão do Tempo
somos metade nuvem
Para acordar as palavras
tanto quanto puder
suspira portas e janelas
aspira fumaça
escuta o desfiladeiro
percebe as horas
e como um insone
prepara o café
Recordações de tempos de paz
Pipa futebol de botão mergulho no igarapé pique-esconde pique-estátua polícia e ladrão Super-8 LP colorido banho de chuva picolé de Açaí
Emoções específicas: dublar “Porto Solidão” do Jessé para a família na hora da janta
Consciência cívica: desfilar puto no 07 de Setembro
Memória e hábito: falsificar boletim
Quero ser Augusto dos Anjos
O livro que engoli agora é proteína
Circunscrito em minha pele
Tal planta aquática submersa
Ou substância entorpecente
Na gênese dos sais biliares
Onde a carne fez-se verbo
Palavras são digeridas
No embate das enzimas
Esta refeição eloquente
Ainda queima na língua
A semântica da saliva
Escrevo para
trazer à memória
tudo que havia de imaterial em nosso amor