Parei em frente ao termômetro da rua — marcava 45 graus. Fiquei sem saber se, naquele momento, fazia uma foto vertical, horizontal, selfie com dislike, pose de quebrada, uma dancinha ou um vídeo legendado com narração de IA sobre o aquecimento global. Eram tantas as possibilidades de comentário sobre o fato que desengajei antes de quase fritar como uma lesma na calçada.
Voltei a caminhar buscando uma sombra ou qualquer corrente de ar que viesse da Pacheco ou da Rio Farma. Concatenava se seria possível não tocar no assunto na próxima newsletter — no caso, essa que você lê agora. É impossível. Posso até não falar de calor extremo mas haverá sinais.
Outras Considerações dessa semana traz o olhar de um pai coruja — eu mesmo —sobre a alfabetização da filha e mais: a resenha do filme Kasa Branca, de Luciano Vidigal, pra você ir correndo assistir se estiver em cartaz na sua cidade e uma dica de série que ainda não terminei mas já dá pra comentar.
1 - Ledora em processo
Minha filha Helena, de seis anos, está aprendendo a ler. É uma ledora em processo. Agora engrenou e não para mais. Lê tudo que estaciona na sua frente. Para além de todo orgulho que não cabe, também é fascinante acompanhar um ser humano se divertindo com o sentido das palavras, com as rimas, as concatenações, os anacolutos, as modalizações, galicismos e latinismos, concorda? Claro que no Almanacão da Magali, leitura preferida dela, o estilo é mais despojado. Mas é bom ter parâmetros.
Outro dia, andando na rua, disparou:
— Pai, o que é frontispício?
— É... a fachada de um prédio, aquela parte da frente, sabe?
— E entrega grátis, é o quê?
— Quando você compra uma coisa e não precisa pagar pelo frete.
— Ah, e Sa Sa Le Le. Sale. O que é isso?
— É “promoção” em inglês.
Ela segue lendo o mundo e, às vezes, me traz o noticiário:
— Sabia que o Bolsonaro vai ser preso? Eu li que vai.
Fico espantado com tamanha acuidade jornalística. Mas o encanto maior vem quando ela resolve explorar minha estante.
— Fer-dy-dur-ke. Quem é?
— Ca-mÁ-ra Cascudo. Por que você tem um livro que se chama Cascudo? Que engraçado.
— Pan-Ame-rica. A-gri-pi-no de Paula. É um nome? É o seu avô?
— Na Es-tra-da com os Ra-mo-nes. Sabia que eu já vi um cara com essa camisa?
E assim ela vai, entre as letras e o mundo. Às vezes, enquanto penteio o cabelo dela pra fazer um coque, ficamos em silêncio, observando a luz do sol entrar pela janela. Helena traz o boletim do tempo:
— Li que hoje vai fazer só 35 graus…Ufa, né?!
— Nossa, quase inverno! Vou até pegar um casaco.
— Tá maluco, mermaum?
Rindo e derretendo de calor, dou o último ajuste no coque, lembro alguém disse uma vez: infância não é um tempo de vida, mas um estado de espírito. Tendo a concordar.
2 - Kasa Branca
Falando em infância, juventude e novas gerações, o belíssimo Kasa Branca, dirigido por Luciano Vidigal, conta a história de Dé (Big Jaum), um jovem morador da comunidade da Chatuba, em Mesquita, Rio de Janeiro. Ele assume a responsabilidade de cuidar da avó, Dona Almerinda (Teca Pereira), que enfrenta um estágio avançado de Alzheimer. Sem uma rede familiar estruturada, Dé conta com o apoio dos amigos Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco) para garantir o bem-estar da avó em seus últimos dias.
Essa sinopse, com jeito de Wikipédia, não dá conta da real dimensão do filme. Às vezes, como roteirista, tenho a mania de querer amarrar tudo, evitar pontas soltas na narrativa, e acabo esquecendo que cinema também é sobre produzir novas perspectivas, criar imagens inéditas que, sempre que possível, fugir das representações estereotipadas. Kasa Branca consegue equilibrar essas duas coisas.
É sobre muitas questões: amizade, memória, abandono parental, paixão, sexo, arte, diversão, acolhimento, desigualdade, ausência do Estado, a geração mais velha morrendo sem assistência e a geração mais nova sobrevivendo apenas com fé, fé, fé.
A bela fotografia, assinada por Arthur Sherman, em alguns momentos remete ao azulado de Moonlight (Barry Jenkins, 2016), o que só joga a favor do filme. A trilha sonora, composta por Fernando Aranha e Guga Bruno, reforça a identidade cultural da comunidade e se integra organicamente às cenas, sem se sobrepor. No Festival do Rio de 2024, Kasa Branca recebeu os prêmios de Melhor Direção de Ficção para Luciano Vidigal, Melhor Ator Coadjuvante para Diego Francisco, além de Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora.
Vá ver, vei!
2 - Ruptura
Saltitando da air fryer que se tornou o Rio de Janeiro, para a frieza das salas e dos corredores da Lumon Industries e seus funcionários bugados por um procedimento que separa suas memórias de trabalho das pessoais, criando identidades distintas. O cara-crachá na distopia.
Três anos depois da primeira temporada, a série Ruptura (título original: Severance) criada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller, estreou mês passado na Apple TV+
Resumo rápido: Mark Scout (Adam Scott) e seus colegas de firma ("innies") descobriram verdades perturbadoras sobre suas vidas fora do trabalho (“outties”). A esposa de Mark, que ele achava morta, está viva da silva e trabalha como a enigmática Sra. Casey. Já Helly (Britt Lower), a rebelde do grupo, na verdade é uma Eagan legítima, herdeira da família que comanda a empresa. Agora, os personagens não estão apenas tentando entender quem são – eles querem quebrar o sistema.
Essa temporada traz reforços de peso: Gwendoline Christie (Game of Thrones), Alia Shawkat (Arrested Development) e Bob Balaban incorporando mais nuances (e estranheza) ao universo perturbador da série. O mundo dentro e fora do trabalho, as consequências desastrosas da interseção pessoal e profissional, controle corporativo, crises existenciais, antes desse parágrafo nparece uma chamada do Profissão Repórter, ainda tem Patricia Arquette (gigantona, tá?), John Turturro, Christopher Walken e Bob Balaban. É o suficiente pra começar a assistir, ok?
Pois, semana que vem é Carnaval e essa newsletter vai estar sob efeito das libações momescas. Nos vemos então, no domingo, pós quarta-feira de cinzas.
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