1 - Síndrome do inédito
Na calçada detonada, a raiz da árvore desregula as pedras portuguesas. Enquanto espero o ônibus para mais um café/entrevista, o louco da rua veio em minha direção pediu um cigarro. Não fumo, amigo. Quer dizer, fumo mas não pago imposto. Pensei. Ele sai praguejando como o personagem de Holy Motors. Atravessou sem se importar com as buzinas dos carros apressados.
Voltei minha desatenção para o celular e nenhuma mensagem nova. Apenas a busca constante de conteúdos sem interesse. Síndrome do inédito. Cada vez que boto e tiro o celular do bolso - faço isso umas quatro ou cinco vezes na sequência - recebo novidades de estranhos que não conheço e sigo como mensagens na garrafa.
Alguém mostra como se dançava nos anos 80, uma nova receita de salada de alface, uma dica infalível para dobrar lençol com elástico, como vender seu livro não só para seus amigos, como ajustar o mindset e parar de procrastinar, curso de Mandarim, um esquete sem graça com um bom set up, Luiz Melodia no Fantástico, bombardeio no Líbano, uma versão musicada da entrevista da garotinha que Xou da Xuxa é esse?
Boto o celular no bolso. Tiro o celular do bolso. Nenhuma mensagem. Volto ao feed. Novas dancinhas, uma resenha do pior show do rockinrio, a campanha eleitoral de São Paulo em forma de meme, um homem com uma camisa amarela na cabeça faz uma professora conversando com alunos imaginários. O ônibus chega mas para longe. Celular no bolso. Mochila pra frente. Fone de ouvido Doces Bárbaros pé quente, cabeça fria estralando. Tiro celular do bolso. Nova mensagem: “Aquele projeto andou” e quase tropeço em uma pedra portuguesa desregulada. Agora sim, inédito.
2 - Orixá em terra
E eles eram Xangô e Yansã, o estrondo e a propulsão no desejo recíproco entre o céu e a terra. Os dois se beijavam em línguas como que de fogo e era puro prazer cósmico. Eles estavam inundados de chuva, suor, sangue, água do mar, água do rio, guaraná, cerveja, vinho e a porra toda. Tudo jorrava e revolvia por cima deles. Derrubando árvores, pensamentos, seguindo a linha. E já não eram mais dois corpos, eram duas impressionantes esculturas de lama.
Depois ele disse que sonhou com o dia em que nasceu. Teve festa, bebida e adivinhação. E alguém disse que ele estava predestinado a viver uma história de solidão, uma história de correr mundo sem sair do lugar, sem sair do berço, da cama, da própria testa. Uma história de beleza e saudade. Uma história qualquer.
Acho que nasci com dor de cabeça. Ele disse. Foram dias difíceis mas já passou. Ela disse isso quase cantando. Você devia aprender com Obá e valorizar o amor próprio. Ela cortou a orelha por amor a Xangô e por causa disso foi desprezada. Que nem aquele pintor lá o…Esse mesmo. Obá ficou tão triste que as lágrimas dela formaram um rio. Pense.
No dia seguinte, ele acordou as oito da manhã com uma disposição incrível, numa estranha segurança. Era um dia quente e bonito. Ela guardou um raio embaixo da língua como um segredo.
3 - Poemas de Chico Alvim
Segundo o Google tá assim: Francisco Alvim, poeta e diplomata. Estreou em 1968 com o livro “O Sol dos Cegos” e junto com Cacaso faz parte da geração dos poetas “pós-vanguardas”.
De minha parte, sou muito fã de seus poemas curtos, galhofeiros e angustiados. Tanto gosto que tomei emprestado o título de um deles - Outras Considerações - para dar nome a essa Newsletter.
Guichê
Uma pessoa vem aqui / tem vinte anos / de repente volta / tem setenta
Viagem
O que me levou a amá-la / tão de repente / olhar de água verde / claridade / Caminho por uma cidade / que com ela se parece / alta e antiga / entre árvores de flores lilases
Suspiro
A vida é um adeusinho
Vida de Artista
Meu tio / levou a vida que sempre quis / era funcionário público / e nem a mulher sabia
Água
Falar de ti / é falar de tudo que passa / no alto dos ventos / na luz das Acácias / é esquecer os caminhos / apagar o enredo / é pensar nas formas do branco / como teu corpo numa praia / branda e azul / Tua pele não retém as horas / escorres, líquida / sonora
Otras consideraciones
No existen