Marcamos num bistrô, o Maya Café em Laranjeiras. Ela chegou de MotoTaxi. Conheço Chan Marshall, nome artístico Cat Power, desde 1996 quando lançou o disco “What Would the Community Think” e posso dizer que crescemos juntos. Ela é só um ano mais nova que eu. E mais sagaz. Tá sóbria. Tem três meses já. Mas só soube disso porque vi que ela postou no instagram.
Pediu desculpas por estar cinco minutos atrasada. “Estava procurando apartamento em Santa Teresa.” “Achou alguma coisa?”, indaguei. “Sim, porém caro. Achei que ia chegar pagando de ricah. Só que não. Os valores aqui estão uma loucura, não acha?” Respondi: “Acho. Em muitos sentidos. Essa é a sua quarta vez no Brasil?”.
Cat Power ficou imóvel por alguns segundos. Logo em seguida, abriu a bolsa, tirou pacote de fumo. “É Kumbaya.” Murmurou. Enquanto enrolava lentamente um cigarro, me encarou de volta e disse: “Quarta ou quinta vez. Não tenho certeza.” acendeu e soltou tanta fumaça que encobriu seu rosto.
Dia quente. Mesmo assim ela estava de casaco e luva. O ar condicionado do Maya deu conta. Sentamos em uma mesa perto da janela. Dava pra ver a poeira em suspensão nos raios de sol.
Ela pediu um chá verde e eu fui de expresso duplo. E olha que nem sou fã de expresso. Mal fechei o cardápio e ela lançou a braba: "Qual a sua opinião sobre o conflito Israel/Palestina?” Pá. “Bom, veja bem, na guerra de informações, a narrativa da civilização contra a barbárie deve predominar quando, no caso, todos cometem barbaridades.” Pensei. Só pensei. O que eu disse mesmo foi:
“Olha, o momento é gravíssimo. Mas não foi chocante saber que o pai do Alok também é DJ?”
Cat Power fez uma cara de “E daí?”. Continuei: “Na verdade, com todo respeito, na moral…perdoe o meu francês mas acho que…fudeu!”
Ela deu uma pancada na mesa de mão aberta que fez o bistrô inteiro acordar. “Fudeu, cara! Fudeu! É isso. Fudeu.” E balançou a cabeça negativamente algumas vezes em silêncio. Aproveitei a deixa e enunciei:
“A gente pode voltar nesse assunto mais tarde, se quiser. Antes de qualquer coisa, a prévia do seu último disco “Cat Power Sings Dylan” com as versões de “She Belongs To Me” e “Ballad of a Thin Man” estão imbatíveis ao extremo. Você emprestou a essas músicas todo um significado que eu ainda não sei exatamente qual é. Talvez seja o de retomar o espírito revolucionário de 1966. Afinal, não se trata apenas de um disco de covers, mas a recriação do Santo Graal pra todo fã do Bob Dylan: o show pirata ao vivo no Royal Albert Hall. E apresentar essa fase do Dylan pela perspectiva feminina é uma coisa fascinante.”
Cat Power me encarou. Séria. Eu nunca soube de onde veio aquilo tudo que eu falei. Talvez efeito do expresso duplo. Ela deu um gole do chá e emendou:
“Fico feliz por ter gostado. Agora, cara, não sou a primeira nem vou ser a última, espero. O que você me diz das versões da Joan Baez, da Joni Mitchell e Odetta pras músicas do Dylan?”. Pensei um tempo e respondi “Elas são absolutamente fabulosas”.
Cat franziu o cenho e continuou: “Isso não é o nome de uma série? De qualquer jeito, eu não sei, cara. Escolho muito bem as músicas e os artistas que vou regravar. Preciso me sentir conectada com música e letra. Ninguém me diz o que fazer. Mas agora eu tenho Agente, sacou?”
“Sei como é. O mercado tá desse jeito. Ele opina muito?”
“É ELA. Tem que ser homem?"
“Desculpe, pode me corrigir.”
"Eu nunca precisei de Agente. Tô há mais de trinta anos na estrada. Conheço todo mundo e todo mundo me conhece. Mas, hoje em dia, como dizem por aí, fica mais “profissional”, tá ligado? Que seja. Minha raiz é outra.”
De pronto, emendei: “E qual seria a sua raiz?”. Ela começou a cantar “Black Mountain Blues” de Bessie Smith e o bistrô acordou de novo. “Essa é minha raiz. Bessie, Billie Holiday, Eartha Kitt e mais Lana Del Rey, Iggy Pop, Pogues, Nick Cave. Não vou gravar um disco qualquer só pra viralizar no tik tok or some shit like that.” Nesse momento, notei que meu Google Tradutor já estava dando defeito.
Antes de pedir a conta, fiz uma última pergunta: “O que você mais gosta no Brasil?”. Foi a primeira vez que Cat Power respondeu sem pensar muito: “Cachaça de Jambu. Só não bebo mais.”
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Cat Power está te julgando.