Rio de Janeiro, 2074. Enquanto Tamara ajeitava os discos na estante, Nôa terminava de pendurar os enfeites na árvore. Um boneco de neve, uma bota velha e uma estrela meio torta no topo. Tamara botou pra tocar na vitrola um som das antigas: “O nosso amor/ vai ser assim/ eu pra você/ você pra mim/ tristeza/ eu não quero nunca mais/ vou fazer você feliz/ vou querer viver em paz/ o destino é quem me diz”. Tamara deu uns passos de dança e se aproximou:
— Nôa, vai ajudar teu pai acender a lareira. Tá nevando de novo.
Foi logo depois do caos climático que quase todo dia é a mesma coisa. Primeiro um calor insuportável, sol de rachar. Depois chuva pesada, vento forte. O dia escurece, fica frio. Daí a neve. Neve, mané. Muita coisa.
Não foi só por aqui que o clima bugou. As águas cristalinas do mar do Caribe congelaram, uma tempestade de areia cobriu a Noruega e o céu do Equador, da floresta até a Cordilheira dos Andes, ficou multicolorido, tomado pela Aurora Boreal.
Enquanto alguns se resignaram e pensaram que dessa vez seria o fim dos tempos, o apocalipse, o destino inevitável da humanidade, para outros, a incerteza climática fomentou novas tradições, rituais e seitas. Uma babel de éticas. Logo, os “gurus” do clima declararam ser capazes de reverter esses fenômenos extremos. Puro charlatanismo e desespero.
Sem a internet, sistemas colapsaram e o conceito de “streaming” virou lenda. A tecnologia, em outros tempos onipresente, foi substituída por processos manuais. As notícias correm lentamente, informação voltou a ser privilégio de quem pode pagar os impressos. Para uma sociedade acostumada com o imediato, foi insuportável.
Os governantes, assustados com o comportamento irascível da população, aboliram do calendário as datas comemorativas e os feriados. Agora era cada um por si. Mesmo. Trabalhe ou festeje o que bem entender, a hora que quiser. O que for possível realizar no improviso, no “calor” do momento, tá valendo. A expressão “É o que tem pra hoje” virou artigo único da Constituição.
Nôa desceu da laje e encontrou o pai abaixado em frente a lareira, mexendo em umas lascas de madeira e um resto de brasa. As mãos dele tremiam ligeiramente.
— A mãe pediu pra te ajudar.
Zaion ergueu os olhos, um sorriso sem jeito.
— Traz o Querosene Jacaré lá da cozinha, filha.
Eles eram uma dessas poucas famílias resilientes que redescobriram habilidades esquecidas: costurar a própria roupa ou cultivar uma horta que agora recebe a chuva que cai como uma força primitiva. O céu estava roxo, cinza e dourado. Nuvens imensas num céu indeciso. Nôa, Zaion e Tamara observavam, abraçados, tudo se sacudir com o vento lá fora. Até que, a chuva se dissipa e novamente surge o sol.
Nôa se desvencilhou dos pais, correu pra fora de casa, sentou na calçada e aproveitou aquela réstia de luz. Sabe lá quando faria sol de novo. Ficou ali cerrando os olhos para enxergar na claridade e, distraída, nem percebeu Zaion e Tamara se juntarem a ela.
Ouviram ao longe, um grupo de pessoas cantando pela rua molhada: “O nosso amor/ vai ser assim/ eu pra você/ você pra mim…” era um bloco passando saudoso e sedutor. Certas coisas não morrem.