Depois de alguns dias imerso na lírica de Antonio Cícero, a coisa foi naturalmente se encaminhando para audições, ora engajadas, ora ao sabor do final de semana, por faixas nem tão conhecidas do poeta. No entanto, gravadas por gente do calibre de João Bosco, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto e Ney Matogrosso.
Seguindo mais além, não é novidade, mas sempre me emociona a parceria Cícero e Marina que pavimentou por aqui, o estilo “Pop Sofisticado” (ou Sophisti-Pop por lá) que dominou as paradas pelo menos da metade dos anos 1980 ao inicio dos 90 com Sade, Prefab Sprout, Style Council e The Blue Nile, (pergunte a seus pais) e agora revitalizado com Ana Frango Elétrico, Clairo e Julia Holter.
Mais detalhes nessa edição Fullgás de Outras Considerações. Aqui você também vai encontrar o Pique de Dora Morelenbaum e a poesia de Orides Fontela.
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1 - O Pop Perfeito
Tem dias em que o clima flertante de jazz, soul, bossa nova, linha de baixo suave, introspecção e uma certa cafonice me pegam muito. Talvez seja o fato de que o Sophisti-pop foi o estilo musical responsável pela minha transição da crueza do Metal para a Ilha da Fantasia do pop. Eu devia ter uns 15 anos, férias em Vitória, Espírito Santo, comendo milho no calçadão. O rádio torava Smooth Operator da Sade, que ainda ressoa no lado esquerdo do peito tal e qual uma madeleine proustiana.
A música é um refúgio nesse equilíbrio entre a sofisticação, a singeleza, e mais o tom sincero de letras que falam de amor, perda e isolamento. A trilha perfeita pra fugir do caos. Djavan, a fase Um Banda Um do Gil e Rita pós-Mutantes, nadaram de braçada nessa estética. Mas foi Marina Lima quem mais se apropriou do Sophisti-pop.
Pra ficar na década de 80, quatro discos fundamentais: Fullgás (1984), Todas (1985), Virgem (1987) e Próxima Parada (1989). Depois ela depura em Marina Lima (1991) - é o que tem “Acontecimentos”; “Não sei Dançar” e “Criança" - e O Chamado (1993) é o que tem Dalto em grande estilo na regravação de "Pessoa".
Então, não é só a música, tá ligado? É toda uma época. Todo um contexto. Uma descoberta. Uma qualidade sexy e romântica da adolescência onde tudo parecia calculado pra soar atemporal, cinematográfico, com a direção de arte e o figurino levemente equivocados embalando geral em ternos de linho com ombreiras.
2 - Dora rainha do frevo e do maracatu
Cito Dorival Caymmi só pra afirmar ainda mais a minha paixão verdadeira por cantoras. Por isso, vou escrever sobre mais uma que lançou disco novo esses dias: Pique da cantora, compositora e instrumentista Dora Morelenbaum.
Primeiro disco pós-Bala Desejo, traz essa bela capa com a foto de Maria Cau Levy, e produção de Ana Frango Elétrico (Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua) - Alberto Continentino (baixo), Luiz Otávio (teclados), Sérgio Machado (bateria) e Guilherme Lirio (guitarras). Dora canta lindamente em cima da cama de referências anos 1970-80. Vai de momentos que lembram Gal Costa de “Mini-Mistério” (fase LeGal) nas faixas “Essa Confusão” e “Pique”. Em outros, o já supracitado Sophisti-pop em "Venha Comigo” e “A Melhor Saída”. Jazz-Funk de “Sim, Não”, Jazz-Lounge em “VWBlue”, quase uma intro pra “Petricor”. Aqueles pique.
Parcerias com Zé Ibarra (Talvez), Sophia Chablau (Venha Comigo) e Tom Veloso (Nem Te Procurar) fazem desse disco, em meia horinha, um sopro de inventividade. Ao mesmo tempo experimental, despretensioso e, na minha opinião, com todo respeito, candidato a um dos melhores do ano. Muita coisa.
3 - Orides Fontela
Saindo do clima jantar à meia luz, uma mudança radical porque viver é lutar.
Pois, primeiro foi o nome inusitado que chamou atenção. Depois, os versos curtos, minimalistas. Em seguida, os temas: a morte, o tempo, e a condição humana sem nenhum tratamento emocional ou sentimental. Assim me tornei leitor voraz de Orides Fontela.
Noite
Esconder (esquecer) / a face / soterrar (ocultar) / a luz / escurecer o amor / dormir / Aguardar o que nasce
Desejos
Um gato / e um girassol feliz / Uma nudez sem nome / Um imaculado vinho
A Estrela Próxima
A poesia é impossível / O amor é mais que impossível / a vida, a morte loucamente impossíveis / Só a estrela existe / Só existe o impossível
CDA (Imitado)
Ó vida, triste vida! / Se eu me chamasse Aparecida / dava na mesma
Toda Palavra é crueldade