A internet vem funcionando assim, todo mundo tem uma dica boa sobre qualquer coisa: alimentação, séries pra assistir, dicas de mindfulness, cuidados com as plantas ou qual a melhor maneira de dobrar meias. Compartilhar conselhos virou moeda social e criou-se um ciclo interminável de “eu sei uma coisa que você não sabe”.
A necessidade constante de recomendar algo nos transformou em peritos em coisas que ninguém perguntou, eruditos das minúcias, especialistas em curiosidades desconhecidas.
E tchã-rã! Essa Newsletter não vai ser diferente!
Lembrando que se você quiser realmente virar um PhD em assuntos improváveis, considere assinar a versão paga (dez reais) e ler coisas que ninguém jamais escreveu como Trântandantalo e outras palavras sem sentido.
Nessa edição de Outras Considerações você vai encontrar: a primeira resenha da série “Relacionando Discos Improváveis” com Recanto da Gal x Big Calm do Moorcheba, mini bio do músico egípcio Hany Mehanna e a poesia de Waly Sailormoon, o Marujo da Lua.
1. Recanto Big Calm
Levei um tempo pra voltar a ouvir Gal Costa. Não que faltasse oportunidade. Ela estava presente em todas as playlists e na memória das pessoas ao meu redor. Decidi escutar as músicas e discos da carreira dela que menos escutei na vida. Daí, comecei pelo Recanto, de 2011.
Produzido pelo Caetano, esse disco é um exercício de modernidade. Mistura batidas eletrônicas, sintetizadores e experimentações mantendo a essência da voz. Aquele sopro de inquietação e doçura de Gal.
Em uma audição recente, enfumaçada e em boa companhia, a sonoridade lembrou Moorcheba, uma banda inglesa de trip hop, querida da crítica na época e de quem só ouvi um disco: Big Calm de 1998. E lá vou eu, obcecado por links e conexões, ouvir novamente e transformar tudo em assuntinho.
A vocalista Skye Edwards também é pura suavidade no meio dos beats, loops, do's and dont's, intimista puxado pro lado do blues-folk-soul-pop. Recanto também tem clima intimista, soa mais experimental com letras que falam de solidão, velhice e autotune.
Fiz o exercício de imaginar a Skye cantando samba e, com algum esforço, deve soar ok. Agora, Gal cantando trip hop tá comprovado que foi possível e ainda gerou um show inesquecível e um disco ao vivo. Fato. Esqueça.
1. O Sanfoneiro do Egito
Essa é a capa da coletânea Music for Airplanes que reúne peças compostas entre 1973 e 1980 de Hany Mehanna, o “Rei do Acordeon” do Cairo. Figura essencial na música egípcia, por suas trilhas em filmes e séries de TV.
Misturando o tradicional com o experimental, pegada psicodélica, groove, violinos e percussão, em composições que inspiraram um novo gênero: o electro-shaabi, popularizado no Egito durante a Revolução de 2011 (mesmo ano de Recanto, olhaí).
Sigo mesmerizado por essas paisagens sonoras, apesar de toda hora lembrar dos versos daquela música do Capital Inicial que surgem como um pop up em minha mente: “A Europa está um tédio / Vamos transar com estilo / Nós só temos um remédio / Descendo o Rio Nilo / Amor de Crocodilo descendo o Rio Nilo”.
3. Waly Salomão
Me pegou demais esses dias uma música do Caetano, época Banda Cê, intitulada “Waly Salomão”, uma carta para o amigo e poeta:
Meu grande amigo / Desconfiado e estridente / Eu sempre tive comigo / Que eras na verdade / Delicado e inocente
Findaste o teu desenho / E a tua marca sobre a terra resplandece / Nítida e real / Entre livros e os tambores do Vigário Geral / E o brilho não é pequeno
Eu sigo aqui e sempre em frente / Deixando minha errática marca de serpente / Sem asas e sem veneno / Sem plumas e sem raiva / Suficiente
No final da música, deu rasteira na minha emoção. Lembrei de todos os meus amigos quando descobrimos “onde estava” Waly Salomão. A entrevista que fizemos com ele e que nunca publicamos, o filme Pan-Cinema Permanente “agarro o sol com a mão” e a dança na contraluz. Waly na TVE, me abraça, pergunta o que faço, estagiário, respondo. Pergunta meu nome, sobrenome e diz que também tem parentes libaneses. Lembrei do “Me Segura” e do “Poesia Total” de onde transcrevo:
ALEGRIA
minha alegria permanece eternidades soterrada / e só sobe para a superfície / através de tubos alquímicos / e não da causalidade natural / ela é filha bastarda do desvio e da desgraça / minha alegria: / um diamante gerado pela combustão / como rescaldo final de incêndio.