Como bem sabe o ledor, essa newsletter costumava sair às quintas-feiras. Adentramos 2025 e, por alguma causa idiopática, passou a circular aos domingos. Entretanto, só hoje, na terça-feira, você está com sua Outras Considerações na ponta dos dedos. Vai saber. Quer dizer, eu sei. Semana passada meu computador pifou, enguiçou, márreu.
Se, como diria Machadão, a paciência é a gazua do amor, não importa muito o dia, tá certis? O que importa é aquietar o coração. De vinho, poesia, virtude a bel-prazer. E se pá, com um Oscar em pleno Carnaval. Nas últimas semanas, foram tantos vídeos iluminados da Fernanda Torres que ela virou minha coach. Sempre que eu precisava mudar o mindset para um Brasil possível, eu assistia uma entrevista dela ou um trecho de filme ou série. Entrei numas e fui lá em 1995 revisitar Terra Estrangeira de Walter Salles, com a jovem Fernanda de 30 anos. Você vai conferir já já, logo depois da...
…Resenha sobre a música-título dessa edição: I’m So Bored With The USA, o grito punk anti imperialista do The Clash em 1977 e que reverbera até hoje…
…And in the end, um trecho da mais alegre das destruições: Memórias Sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade.
Outras Considerações no ar. Enjoy, minha joia.
1 - I’m So Bored With The USA
E quem não está? Se alguém, nesse momento, não está entediado com os Estados Unidos, só pode estar dando lavagem ao macaco, banana pro porco, osso pro gato, sardinha ao cachorro e cachaça pro pato. Agindo feito um louco, suponho.
Para nós, os velhos, a vida já é mormente cansativa. Com as notícias pavorosas dessa nova era Trump, ficou muito mais. Se em 1977, essa hegemonia cultural que invadia vidas através de Hollywood, guerras intermináveis e escândalos políticos tipo Watergate eram suficientes para o descontentamento geral, pense como o contexto atual é tão ou mais entediante do que naquela época. PENSE.
Fato curioso é que a letra da música foi escrita originalmente por Mick Jones para uma ex-namorada e parava em I’m so bored with you. Junto com a mente mordaz de Joe Strummer os dois compuseram um libelo combinando sarcasmo inglês contra a hipocrisia e a influência maligna dos Estados Unidos em outros países.
yankee, a dollar talk / to the dictators of the world / in fact it’s giving orders / an’ they can’t afford to miss a word / I’m so bored with the USA
Enquanto o punk dos anos 70 via os EUA como uma máquina de guerra, hoje a política anti-imigração, a violência racial e ataques contra a orientação sexual lgbtqiapn+ vai bosquejando um país em que a política de exclusão é tão brutal quanto qualquer conflito armado.
Neste ínterim, não sou, e nem pretendo ser, cientista político nem comentarista do G1, mas talvez o maior paralelo entre 1977 e agora seja a maneira como os fatos foram e não temos a menor ideia do que se vai produzir em termos de fake news, junto com as conspirações inflamadas por algoritmos e nazistas (ainda) não declarados.
Seguimos na luta, sempre. Apoiando onde tiver um quarto, uma garagem com um ou mais carinhas. Guitarra, baixo e bateria ligados na energia caótica contra o fascismo.
2 - Terra Estrangeira
Acredito que, nesse momento, por uma sagacidade natural, o amigo leitor deve estar se fazendo a seguinte pergunta de milhões: “E o kiko?” O que temos a ver com isso? É o que pretendo explicar nos próximos parágrafos.
Para traçar um paralelo entre os anos 1970 no Brasil e o contexto atual, incluí uma parada nos anos 1990, quando o país ainda carregava o travo amargo por conta do confisco de nosso dinheiro pelo governo Collor. Para construir esse elo narrativo, recorro à figura de Fernanda Torres, atriz que não apenas marca presença em nossos feeds, assim como em Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, O que é isso Companheiro? (1997), de Bruno Barreto e em Ainda Estou Aqui (2024), também dirigido por Walter Salles. Sua atuação é o fio que conecta esses diferentes momentos históricos e joga luz na crise atual.
Em Terra Estrangeira, Fernanda Torres dá vida à Alex e todos os percalços de uma imigrante ilegal brasileira que trabalha como garçonete em Lisboa. Em O Que É Isso, Companheiro?, ela interpreta Maria, uma militante envolvida no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick e dividida entre os riscos da luta armada e dilemas pessoais. Já em Ainda Estou Aqui, interpreta Eunice Paiva, uma dona de casa que enfrenta a dor e a resiliência necessárias para lidar com o desaparecimento forçado de seu marido durante a ditadura militar.
Sem estereótipos, Fernanda Torres parece ter a capacidade única de interpretar personagens em contextos históricos específicos que ressoam questões contemporâneas. Sem mencionar o brilho que ela entrega agora nas entrevistas e eventos de divulgação de Ainda Estou Aqui. Tudo isso somado ao fato de que podemos ser agraciados com um, dois, quem sabe três “Oscars”, Fernanda Torres é o tônico, o elixir contra o dissabor e o tédio que vem dos Estados Unidos.
Pprt: Antes de seguirmos para mais um antídoto contra o tédio, já é bem sabido que escrever dá trabalho. Nos toma tempo e até dinheiro. Por isso, considere passar para a versão paga dessa newsletter (dez reais por mês) e continuar essa resenha na moralzinha.
3 - Memórias Sentimentais de João Miramar
Oswald já foi meu pai, meu avô, bisavô e tataravô. Espírito Aganju elevado aos céus. Leitura pétrea de minha adolescência. Esse livro, junto com Serafim Ponte Grande, estão entre os preferidos da poética Oswaldiana. Aqui um trechinho para fecharmos o dia e essa ediçã (eu sei, é só pra rimar com o final do poema):
Miramar a vida é relativa
O acontecido não teria sido
Se nascesses só
Sem a mãe que te deixou virtudes caladas
O acontecido te ofertou
A filhinha de olhos claros
Abertos para os dias a vir
És o elo duma cadeia infinita
Abraça o Dr. Mandarim
E soma a ele ao azul dessa manhã
Louçã