“O assunto é: cinema. Cinema. Cinema.” Assim bradava, aos borbotões, Glauber Rocha no programa Abertura, na TV Tupi, em 1979. Corta para 2025 e temos a série O Estúdio, na Apple TV+, criada por Seth Rogen e o assunto é: cinema. cinema. CINEMA.
Estamos em pleno Pato com Laranja. Confesso que não gostei muito dos dois primeiros episódios e estava pensando em largar de mão. Porém, costumo insistir em relações capengas com a TV e foi no terceiro episódio, intitulado “The Note” — ou “A Observação” em português ruim — que a coisa pegou e engajei. Sou time Matt Remick desde criancinha.
Talvez por ser o episódio mais bem acabado e engraçado, também é aquele em que passamos a nos importar com o protagonista. Na fictícia produtora Continental, o executivo e noiado Matt Remick (Seth Rogen) construiu sua carreira bajulando atores e diretores famosos na esperança de ser aceito pela indústria. Matt é promovido a chefe do estúdio por seu superior, o CEO Griffin Mill (Bryan Cranston), logo após a demissão de Patty Leigh (Catherine O’Hara), uma produtora lendária em Hollywood.
Pois, no episódio em questão, Matt enfrenta o desafio de dar um feedback crítico (note) ao renomado diretor Ron Howard (Uma Mente Brilhante, Código Da Vinci, Cowboys & Aliens) sobre seu novo filme, "Alphabet City". Após uma exibição prévia, Matt e sua equipe percebem que a sequência final, de 45 minutos, sem falas e só de olhares entre um pai e o espírito do filho, compromete o ritmo da narrativa. Matt e sua equipe decidem sugerir ao diretor que a sequência deve ser cortada do filme.
Matt reluta em transmitir essa observação a Howard e revela a equipe que é por conta de um trauma causado por uma experiência anterior. Anos antes, durante uma sessão de "Uma Mente Brilhante", Matt sugeriu uma alteração que foi mal recebida por Howard, resultando em uma situação constrangedora na sala de roteiro.
A situação se complica quando Patty, ex-chefe de Matt, conta que a sequência final é uma homenagem ao falecido primo de Howard, o que confere todo um significado pessoal. A equipe de Matt chega a se perguntar se primo pode ser considerado parente. Tentativas frustradas de outros membros da equipe em abordar o assunto com Howard falham, aumentando a pressão sobre Matt.
Bom, não vou ficar aqui entregando toda a rapadura. Mas a situação escala para uma reunião desastrosa de confronto físico. O que importa aqui é além desse quiprocó todo, a série é um tributo ultrajante e sincerão aos artistas e criativos que tentam sobreviver na indústria do entretenimento — ao mesmo tempo em que funciona como um grande fudace para os executivos e seus egos maiores que a encomenda.
O episódio é cheio de boas tiradas como “never ending snoring”, traduzindo, “ronco sem fim” — trocadilho com o filme de 1984 “Never Ending Story (História Sem Fim)” — para rotular a sequência final tão estimada pelo diretor. Diálogos como “Seu trabalho é dizer não, Vá lá e faça seu trabalho.” ou quando uma assistente traz a notícia de que os exibidores estão reclamando da duração do filme, explicando que "as pessoas não querem filmes tão longos a não ser que tenham capas ou alienígenas".
A estrutura de O Estúdio é de um sitcom de luxo, bem produzido, girando em torno de Matt e sua equipe pelos cenários mais variados da Continental, sempre tentando tirar filmes do papel. O comportamento desajustado dos personagens reflete a experiência real vivida pelos criadores da série por décadas. Daí, um certo tom de desabafo, sabe? De quem já viu de um tudo? O roteiro vai do absurdo da sátira em um mix com situações totalmente plausíveis na esfera do real.
Ao mesmo tempo em que zoa o atual estado da indústria e dos executivos, a série também presta homenagem a diversos estilos de cinema e técnicas de filmagem: um episódio é filmado, ironicamente, em plano-sequência, enquanto outro adota o formato noir, além de situações bizarras como aprovar o filme do Ki-Suco na onda do sucesso bilionário da Barbie.
O Estúdio se utiliza de uma estética era uma vez em hollywood setentista, o que me levou imediatamente ao livro de Peter Biskind, “Como a Geração Sexo, Drogas e Rock’n’roll Salvou Hollywood” (título original Easy Riders, Raging Bulls), de 1998.
Um relato detalhado e controverso sobre os bastidores do cinema americano nos anos 1970. O livro reconstrói o período em que os jovens cineastas Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Steven Spielberg, George Lucas e Brian De Palma romperam com o sistema dos grandes estúdios e reinventaram a linguagem e o mercado do cinema.
O cinema americano do final dos anos 1960 estava em colapso: as grandes produções não se pagavam, o público jovem se afastava das salas, e os executivos não sabiam mais o que vender. Nesse cenário, a entrada de cineastas com influência da nouvelle vague, da contracultura e da experimentação — aliado ao rock, drogas e liberação sexual — criou um novo modelo de produção e linguagem.
Porém, não pense, cinéfilo ledor, que o livro romantiza esse processo: o mesmo espírito libertário que impulsionou os filmes também produziu ególatras, comportamentos autodestrutivos e relações de poder abusivas.
Este olhar desromantizado sobre Hollywood também está em O Estúdio. Se o livro de Biskind narra a ascensão de uma geração que desafiava os estúdios, a série de Rogen mostra justamente o contrário: um sistema em que o poder voltou às mãos dos executivos, que hoje são figuras caricatas, perdidas entre planilhas e estratégias de marketing. O cinema de autor deu lugar às franquias, aos remakes e ideias para agradar investidores.
Matt Remick, personagem central de O Estúdio, é a antítese dos cineastas dos anos 1970. Se Coppola brigava por liberdade criativa, Matt vive tentando equilibrar seus próprios dilemas éticos com a necessidade de aprovar projetos ridículos.
A série e o livro se complementam como retratos de duas fases do cinema americano. O livro mostra o quanto de rebeldia ainda era possível a qualquer custo e O Estúdio mostra o que sobrou de rebeldia em meio a guerra dos memes. De 70 pra cá só mudam os personagens e os termos do contrato.
Aqui não tem tarifaço! Considere passar para a versão paga (10 / 50 reais) e até o próximo domingo!
Já me falaram que tem episódios melhores que o primeiro. Com você confirmando, vou dar essa chance.