1 - É sua neta?
Saímos da farmácia meio injuriados. “Pai, já é a quarta pessoa que pergunta se você é meu avô.” Helena estava indignada. “Quando a gente vai pintar a sua camisa: Eu sou o pai dela, com uma seta apontando pra mim?”
Achei graça daquele ser humaninho de seis anos reivindicando justiça para seu pai de 53. Que, sim, poderia passar por avô. Um avô com dores nas costas, inclusive. “Acho que é a barba, pai. Tá muito branca.” Helena continua conjecturando, como quem elabora um relatório sobre envelhecimento precoce. Eu estava entre o orgulho da filha justiceira e o constrangimento em fingir nunca ter pensado em comprar o shampoo que promete devolver o tom acobreado da barba em dez lavagens. E olha que acobreado não é nem de longe minha palavra favorita.
Mais barato que shampoo que promete rejuvenescer em até dez lavagens é passar para a versão paga dessa newsletter (10 / 50 reais).
A verdade é que já não me incomodo tanto. Avô tem lá seu charme. Prudência, chocolate no bolso e histórias mirabolantes. Três coisas que, definitivamente, não tenho. Já fui confundido com tio, padrinho e até com quem não é parente, tipo o “finado poeta Renato Russo”, como, certa feita, me disse um motorista de aplicativo.
Lembrei da enigmática música Avôhai, neologismo criado por Zé Ramalho que combina as palavras “avô” e “pai”. Escrita em homenagem ao avô que o criou. Meu velho e indivisível Avôhai. Num mergulho ainda mais profundo Babá Alapalá do Gil que, palavras do próprio, celebra a caminhada da ancestralidade até o presente. Também projetei um futuro tricotando um suéter em frente a lareira e depois sair para passear nas manhãs de domingo como em When I’m Sixty-Four dos Beatles.
Chegamos em casa, Helena correu pra pegar suas canetinhas coloridas. Me deu uma folha com uma seta e escrito em caixa alta: “Não é avô!” Colei na geladeira como quem pendura um diploma.
2 - O mundo de acordo com André 3000
Como já sabemos, o Met-Gala é aquele evento que acontece na primeira semana de maio no Metropolitan Museum of Art, em Nova York, com o objetivo de arrecadar fundos para o instituto e também marca a abertura da exposição anual. Cada edição possui um tema específico, que serve de inspiração para os modelitos dos convidados.
O tema desse ano é o dândi negro: "Superfine: Tailoring Black Style", examinando a importância da roupa e do estilo para a formação de identidades pretas. O dandismo, para quem não conhece, é um cuidado exuberante com o jeito de se vestir. No contexto da exposição, é entendido como forma de resistência, reinvenção e de subverter normas sociais. A exposição revela como mulheres e homens deixaram de ser escravizados ou exibidos como artigos de luxo e passaram a se afirmar como indivíduos criativos influenciando as tendências culturais mundo afora.
O dândi mais inventivo das últimas décadas atende pelo nome de André 3000. Músico, produtor e, mais recentemente, designer de moda. Se por acaso o ledor não o reconhece de imediato, basta voltar a 2003 e perguntar aos seus pais (ou avós): o que você estava fazendo se não dançando como se não houvesse amanhã, o hit “Hey Ya!”?
O sublime Speakerboxxx/The Love Below do Outkast — seu grupo desde 1994 — é o tipo de álbum que você ouve com um riso de satisfação da primeira a última faixa. Vendeu mais de 11 milhões de cópias e ganhou o Grammy de Álbum do Ano, apenas o segundo álbum de hip-hop a conquistar esse prêmio.
Corta para 20 anos depois.
Falei da virada de carreira do André 3000 aqui Os Melhores Discos de 2023 - Outras Considerações logo, para não me repetir, você pode ir lá dar uma conferida. Toda essa contextualização foi necessária para que eu fale de seu último disco 7 Piano Sketches.
Distante há anos do rap e cada vez mais voltado para formas musicais introspectivas, 7 Piano Sketches representa outro desvio deliberado na trajetória errática de André 3000. O EP reúne sete peças para piano solo, gravadas ao longo de mais de uma década. São registros caseiros, despretensiosos, captados com recursos técnicos limitados. Não é um projeto polido nem um exercício de virtuosismo técnico. André não é um pianista de formação clássica, e o disco não tenta esconder isso.
O que ele oferece aqui é um registro de momentos, esboços e fragmentos de ideias. Há pausas longas, hesitações, melodias que começam e logo se perdem. Ao contrário do que se espera de um músico pop consagrado, não há clímax, refrões nem uma busca por se encaixar em um gênero ou uma tradição específica. Apesar de dialogar com o jazz espiritual e a música ambiente, é na insistência pelo inacabado que André 3000 (re)encontra sua força.
3 - Pangarés
Depois de 3 temporadas brilhantes, relutei muito em continuar a assistir Slow Horses. Estava com medo de que a próxima pudesse me decepcionar. Eu queria ficar com aquela memória boa, sabe? Se é que o ledor me entende.
O David França Mendes comentou em sua newsletter, Ein Filterkaffee, sobre a quarta temporada e, assim que acabou, teve vontade de assistir tudo de novo e ler os livros em que a série foi inspirada. Daí não teve jeito, tomei coragem e corri pra ver.
Resumo rápido: Slow Horses, (em tradução livre, algo como cavalos lentos ou pangarés) na Apple TV+ , gira em torno de um grupo de agentes do MI5, serviço de espionagem britânico, que, por falhas profissionais ou erros políticos, são relegados à obscura e decadente Slough House. Uma espécie de limbo burocrático. Lá, eles são liderados por Jackson Lamb (Gary Oldman), um chefe desleixado e amargurado, que em cada comentário ou frase proferida por ele contém insulto, sarcasmo e desprezo por seus subordinados, embora no fundo se importe com eles.
Não decepcionou.
Certas coisas não mudam. Nessa nova temporada, Gary Oldman continua a brilhar como Jackson Lamb e a série se mantém enxuta com seis episódios. A evolução dos personagens é um dos destaques da temporada, especialmente a relação entre River Cartwright e seu avô David, ex-espião, cuja demência se agrava.
Ação, diálogos mordazes, crítica social, suspense e humor. Essa quarta temporada mantém o sarrafo lá em cima. Agora, vocês podem me dar licença que eu vou lá ver tudo de novo desde o início.
O slow horses (versao livro) tá na minha listinha de leitura futura há séculos. Acho que inclusive comecei e não engrenei (não sei exatamente porque). Vou caçar ele no Kindle de novo depois dessa. Bejas
nossa, eu não sabia várias coisas dessa newsletter. não sabia que a música avohai era sobre avô pai, e na semana passada tava pensando “que raio é esse met gala” — quer dizer, eu sei que é um baile mas só isso que eu sabia. e muito menos sabia sobre a vida do mocinho do outkast depois do hit (hey ya eu sabia, claro, pois afinal em 2003 eu tava na pista). adoro ler coisas que eu não sabia.