Já me pegou muito a escolha da trilha sonora não óbvia em Ainda Estou aqui com “Jimmy Renda-se” de Tom Zé e a belíssima canção de Erasmo Carlos que dá título a essa Newsletter que você tem agora na ponta dos dedos.
E que pensei em chamar de “Carta aberta a Fernanda Torres” mas depois de pensar muito, desisti. Não sei mais de que forma expressar ou enaltecer sua atuação no filme. Lembrei das festas lá em casa, lembrei de minha mãe, de meu pai, irmãos e amigos. Mas não vou me derramar aqui. Assim como no filme, prefiro evitar o melodrama.
Outras Considerações traz, nessa edição, mais uma resenha elogiosa ao filme de Walter Salles, um tantinho assim do Carimbó de Dona Onete e os microcontos de Matilde Campilho.
1 - Ainda Estou Aqui
Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, que narra o desaparecimento e assassinato de seu pai, Rubens Paiva, um político levado pela polícia do regime militar em 1971, e o impacto disso em sua família.
Tudo é primoroso. Da fotografia de Adrian Teijido - “O Palhaço”, “Elis”, “Marighella”, “Narcos” - iluminando, em película, da felicidade inicial da família às sombras que se instalam após a tragédia, passando pelo roteiro premiado de Murilo Hauser e Heitor Lorega, à direção de arte de Carlos Conti e a casa, um espaço central que, de um ambiente vibrante e acolhedor, se torna um lugar soturno, de acordo com as mudanças emocionais da trama.
Selton Mello e as crianças estão brilhantes, mas, o coração da história está na atuação fora do comum de Fernanda Torres que interpreta Eunice Paiva. Queria destacar uma cena, é um ponto de virada. Um close em Eunice no restaurante que ela vai depois, já sem o Rubens. Ela só observa as outras famílias. Eunice sabe que se cair, a família cai junto. É uma tomada de consciência. Ela consegue se reinventar numa época em que o papel social da mulher era, sobretudo, ser dona de casa.
Cinema é memória. E o filme, por ser todo pontuado por fotos de família e imagens Super-8, dialoga com a memória coletiva brasileira, num período em que um “projeto de país” e seu potencial cultural e democrático, foi interrompido pela ditadura. Fato que alguns idiotas insistem em dizer que nunca ocorreu. Vsf ta lgd.
2 - Uma flor no cabelo, uma boca pintada, uma saia rodada e pé no chão
Toda vez que penso em escrever sobre música me parece uma coisa estúpida, banal no meio de tantos absurdos. Poderia especular sobre o suposto atentado ao STF ou falar do Trump ao invés de continuar fissurado e impactado por sons e ideias. Até me deparar com quem reinventa a coisa e tudo volta a fazer sentido. Como foi o caso de ver no palco o guitar hero Pio Lobato, Vovô Batera e Dona Onete sob a lona do Circo Voador durante um dos eventos da magnífica Flup - A Festa Literária das Periferias.
Um pouco de contexto. Lá no Norte, onde eu nasci, o dedilhado da Guitarrada, mais a mistura de Bolero, Merengue, Cumbia e Carimbó é uma arte nobre. Não é pra qualquer caba que chega e pavimenta o caminho como fizeram Aldo Sena ou Teixeira de Manaus. Primeiros ídolos da juventude, antes mesmo de Page, Hendrix e Pepeu.
Dona Onete, 85 anos, segue como a Rainha do Carimbó Chamegado. Hipnotizando o Circo até a tampa de gente com “Jamburana”, “No Meio do Pitiú” e a catarse coletiva de “Banzeiro”. Lirismo, afeto, energia e safadeza. Te mete. Te joga. Esquece, fi
3 - Matilde Campilho
Continuando aqueles pique de misturar o banal e o extraordinário, Flecha da escritora portuguesa Matilde Campilho gera discussões. Porém, confesso que fui captado pelo conceito de um elemento que atravessa os mais de 200 contos desse livro.
Está acostumado a caminhar. Gosta de esticar as pernas e escutar o barulho que os bichos fazem enquanto brincam sob a terra. Todos os dias abandona o quarto de pedra para aprender com os gestos da natureza os tiques da tragédia. Sabe que as emoções humanas são mais puras sempre estiveram no mundo, sempre estarão. Cansado de pensar, senta-se numa pedra para esvaziar um pouco o peito, e quem sabe até para espantar da vida desperta aquele recorrente sonho que lhe sussurra que a casa cairá sobre si. Leva a mão à túnica e retira de dentro uma laranja, que devagar descasca com a outra mão. No preciso instante em que leva o terceiro gomo à boca, uma carapaça de tartaruga é arremessada por uma águia contra sua cabeça, ferindo-o mortalmente.