As luzes se apagam, começa a projeção de um texto pré-gravado e a voz embargada da cantora Marina Lima, entre outras coisas, dizia assim:
Eu compreendi você. Agora vejam vocês também que o Cícero colocou novamente o sarrafo num outro nível. Meu irmão, eu vou lhe amar. Eternamente.
E agora vamos ao show.
Foi nesse clima catártico que lágrimas rolaram sem que eu me desse conta. Foi o primeiro show sem o irmão, poeta e parceiro musical Antonio Cícero e contava com a presença na plateia do figurinista Marcelo Pies, seu companheiro por mais de 40 anos, que aniversariava naquele dia. Muita coisa.
A resenha desse show - entrecortada por choro, gritaria, soluços, reflexões e alguns tragos na flor - você vai encontrar logo após o próximo parágrafo. Posso garantir, caro leitor, que será uma tentativa de eternizar aquela noite em palavras, pra que até eu mesmo e minhas retinas fatigadas jamais esqueçam daquele momento mágico em que o Circo Voador lotado suspira, se encanta, sonha e saca o celular ao mesmo tempo.
Nessa edição de Outras Considerações você também vai encontrar Virgin Rock, o canal no YouTube de Amy Shafer, uma harpista que ouve Black Sabbath, Pink Floyd e Sex Pistols pela primeira vez e mais palavras, sons e imagens de Arnaldo Antunes.
1 - O Charme do Mundo
Os anos 1980 foram uma bagunça tão grande que só agora estou terminando de arrumar. O que posso afirmar sobre a época é que, depois do Cervantes, o Circo Voador foi um dos lugares que mais coabitei no Rio de Janeiro.
Entre começar a noite em um e tomar a saidera no outro, construí e, por certo, destruí, pontes reais e imaginárias da Lapa a Copacabana. Na época, para todo mlq franzino e, assim como eu, obcecado pelo fanatismo musical, o Circo era um portal de entusiasmo que se abria no meio do fastio da juventude.
Se for enumerar a quantidade de “shows históricos” que já vi por lá até hoje, a lista é grande: Legião, De Falla, Paralamas, Arrigo, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Elza Soares, Wailers, Chico Science, Planet Hemp, Teenage Funclub, Peter Hook, Sugar, Metá Metá, Dona Onete, Ana Franguelétrico, e na moral, com todo respeito, todo show no Circo é histórico.
Deve ser a proximidade do palco, a lona, o lado de fora da lona, os arcos da Lapa, o clima legalize, tudo colabora para o bom andamento. Porém, até o último sábado, ali, nunca tinha assistido um show da Marina. Receba.
Adriana Calcanhoto saiu da plateia, subiu pela frente do palco e performou, tá?
Chegamos cedo. Com a idade isso conta, pode crer. Entre ficar na arquibancada ou perto do palco decidimos ficar no gargarejo. A noite pedia. Expectativas criadas. Como tá a voz? Ela vai tocar guitarra? Violão? Acho maneiro ela tocando. Vai falar do Cícero? Obvio ne. Vai começar com Pra Começar? Vou pegar mais uma cerveja. Guarda o lugar? Povo perfumado ne? Clima bom, diverso, acolhedor.
Pois, acompanhada por Carol Mathias (baixo e teclados), Giovanni Bizotto (violão), Gustavo Corsi (guitarra) e Alex Fonseca (bateria ) ela cantou, tocou violão, guitarra e abriu lindamente o show - intitulado Rota 69 - com Charme do Mundo. Marina e todos debaixo daquela lona, começamos a processar o luto pelo poeta. Comprovar juntos que Cícero está em tudo. Nas palavras, nas observações, no entusiasmo, em hits libertários, atemporais.
E foi um desfile: Virgem, Fullgás, À Francesa, Acontecimentos, Não Sei Dançar e as versões: Rita Lee (Nem Luxo, Nem Lixo), Erasmo (Mesmo Que Seja Eu), Paula Toller (Nada Por Mim), Cazuza (Preciso Dizer Que te Amo), Lobão (Me Chama), Dalto (Pessoa), Kiko Zambianchi (Eu Te Amo Você) e Xexéu (Beija-Flor).
Foi na emoção, misturada a um totozim de água amarga, que fui surpreendido por um hit “obscuro”, fechar a noite apoteótica: Uma Noite e 1/2. Impactados, não fomos ao Cervantes, como seria de praxe, a saideira foi mesmo na Lapa, entre os garçons, Zé Pelintra, cheiro de mijo, cheiro de flor e de perfume na cidade que não tem mais fim.
2 - Virgin Rock
Descoberta recente (anteontem) no YouTube: Amy Shafer, uma musicista clássica, harpista e professora de piano ouve, pela primeira vez, alguns dinossauros e outros consagrados do pop rock.
Durante uma escuta atenta e expressiva, Amy faz uma resenha emocionada, realça sentidos - às vezes nenhum sentido - imagens e valores para músicas como o maior hino Heavy de todos os tempos: War Pigs, do Black Sabbath.
Ela viaja legal na letra de Wish You Were Here, do Pink Floyd e sou da mesma opinião de que trocar “heróis por fantasmas” não é legal. Mas “cinzas por árvores”? Não me parece uma ideia ruim, senhor David Gilmour. Ainda tem Cure, Bowie, Radiohead, Massive Attack, Garbage e Tenacious D que pretendo ouvir em breve, assim que ticar compromissos profissionais e tarefas domésticas.
3 - Como É Que Chama O Nome Disso
Em 2006, Arnaldo Antunes ganhou uma bela antologia (1983-2006) de seus livros e letras com o título aí de cima e que revisitei outro dia, durante evocações oitentistas. Esse é de Tudos
Estou cego a todas as músicas / Não ouvi mais o cantar da musa / A dúvida cobriu a minha vida / Como o peito me cobre a blusa / Já a mim nenhuma cena soa / Nem o céu me desabotoa / A dúvida cobriu a minha vida / Como a língua cobre de saliva / Cada dente que sai da gengiva / A dúvida cobriu minha vida / Como o sangue sobre a carne crua / Como a pele cobre a carne viva / Como a roupa cobre a pele nua / Estou cego a todas as músicas / E se eu canto é como um som que sua