- Posso ir? É? Tá. Não sei por onde começar, mas pode ser assim: Querido Mercado… Trabalhei pra você por vinte e tantos anos. Sempre aturando suas micro alteraçõezinhas em cada vírgula de cada frase de cada roteiro, projeto ou parágrafo para se adequar a sua cartilha, ao seu jeito, ao seu estereótipo. Seu fetiche por prazos inacessíveis a inteligência humana, sua falsa delicadeza, suas mensagens às 2h da manhã cobrando urgência no feriado. Me tornei a pessoa que dá pulinhos na poltrona apontando para o monitor dizendo que absurdo. Um homem sem estômago depois de cinquenta e cinco reuniões que poderiam ter sido emails. Todos endereçados a Vaisefuden, arroba…
-Não, para. Para. Tá um pouco demais. O que você pretende com esse vídeo?
- Seguidores.
- Eu só mudaria uma coisa. Tudo.
- É pra ganhar visibilidade.
- Claro. Pode esperar um milhão de “ninguém views”. Outra, “Vaisefuden”? Não, né?
- Eu gosto.
- Jura? É um vídeo de auto-comiseração? Se for isso, tá no caminho certo. Também não sei o quanto você está defasado, mas o mercado não é mais assim. Essa é uma visão antiga.
- Como é hoje?
- É muito pior.
- De que jeito?
- Todo mundo faz quase a mesma coisa. Dois de três perfis que sigo com dicas de lugares imperdíveis para se conhecer, indicaram o mesmo restaurante “popular”.
- Já vi. Por acaso era um esquete cômico que na verdade era um anúncio?
- Isso. Eles citam itens reais do cardápio e seus valores. Logo percebi que não disponho de fundos para inteirar-me do Bolinho de Rabada e Coleslaw.
- Será que merecia mesmo aquele gesto da mão em conchinha que o cara faz depois de comer?
- Ele quis dizer que é um petisco caro.
- Ah então essa era a piada?
- Sim.
- Obrigado por explicar. Porém, continua sem graça e eu vou continuar com fome.
- Passou na timeline dois dias seguidos no mesmo horário.
- Na hora em que bate a fome.
- Isso, 4h20.
- Eles sabem. Tudo é um grande plano das mega corporações.
- Ok, próximo assunto.
- Tenho a sensação de que não estamos chegando a lugar nenhum e daqui a pouco tudo vai se acabar porque um maluco decidiu apertar um botão.
- Preciso de um cigarro. Ando meio irritada e só o cigarro me dá algum prazer.
- Nada é um prazer quando se está irritado.
-Vai chover.
- Eu gosto de tempestades. Acho lindo, reconfortante.
- É?
- Sim. Por acaso, a chuva, qualquer chuva, me lembra Manaus. Muito mais que o calor. A gente desligava tudo em casa. Mas era por causa dos raios. E era muito raio mesmo. Tinha uma lenda que um monitor explodiu na cara de alguém da família.
- Uma vez fui num festival de cinema ao ar livre que o equipamento pifou por causa da chuva.
- Acontece nos melhores festivais enlameados.
- Que doce maravilha. Não vi o filme e agora tenho que brigar com um robô pelo reembolso do ingresso.
- Tudo faz parte de um grande plano das corporações.
- Esse papo não dá mais. Ao invés daquele seu vídeo "criticando” o mercado, aproveita o Halloween e troca as histórias de monstros por histórias realmente assustadoras de racismo, sexismo, políticas públicas fracassadas, desemprego e brutalidade policial.
- Não sei se vai gerar engajamento. Vamos fazer alguma coisa?
- Em relação a que?
- Passa aqui. Traz cerveja.
- Quantas?
- 4
- Só?
- Traz mais.
- Ainda chove por aí?
- Parou.
- Então até daqui a pouco, Vaisefuden.