Correr no Vácuo
Memórias involuntárias e a desgraça ambiental se encontram na esteira da academia
“Um dos sinais, fortes sinais, de que preciso voltar a fazer exercícios é a coluna apitar. Quando eu digo “apitar” é o bagulho travar, tá ligado? O limite foi o dia em que eu não consegui mais me mexer. Não conseguia. Nem um passo. Uma dor que nem me contem. Parado, imóvel, com minha filha no colo, atravessando a rua. Faz ideia do que é isso?
Carro buzinando, devia ser uber. Ônibus moendo, motoqueiro, entregador já tava como? No nervoso. E eu ali, mano, suando frio. Senti uma gota escorrer até o rego. Sério. Minha filha: “Pai, ficou vermelho pra gente”. Respirei e tranquilizei ela e a mim mesmo. Eu sei filha, vamo resolver isso. Irmão, virei Hulk. Só que sem a radiação.
Saí correndo, mancando, quase catando cavaco. Devo ter batido algum recorde olímpico dos cem metros. Cheguei na calçada como? Pálido, cor de burro quando foge, sei lá. Minha filha ria pra caramba. Veio rindo o tempo todo na carreira. “Papai, o carro quase pegou a gente”. E ria.”
Eu estava na esteira logo ao lado, enquanto o homem de conjunto esportivo monocromático contava essa história para o Personal. Menos interessado que eu, o Personal se restringia a olhar o celular e comentar “Aham, aumenta a passada”.
Para não perder os detalhes do relato que tanto me identifiquei, cheguei a dar uma pausa nos fones durante “Everlong”, a música do Foo Fighters perfeita para não morrer de tédio na esteira. Li isso em algum lugar. Funcionou até aquele momento. Não tinha preparado nenhuma playlist pra suar, em meia hora, todo o carboidrato da noite anterior. Entrementes, o serviço de streaming de música que eu mais uso acertou na sequência com “The things that dreams are made of” do Human League.
Everybody needs love and adventure / Everybody needs cash to spend / Everybody needs love and affection / Everybody needs 2 or 3 friends
Parecia a hora perfeita para aumentar a velocidade e “correr no próprio vácuo”. A frase do livro sobre corrida, do Murakami. Esse livro, como todo livro do Murakami, é cheio de frase bonita, tipo “silêncio nostálgico”. Ele tinha um bar de jazz, nos anos 80, no Japão. Vendeu pra cuidar da saúde, se dedicar a literatura e as corridas.
Eu sempre me pego dividido nessa história. Por um lado, curioso com a relação entre correr e escrever. Por outro lado, amigo, conta mais sobre como é ter um bar de jazz no Japão. E nos anos 80. Eu consigo me imaginar administrando esse bar. Mentira.
Mesmo focado na esteira, é complicado normalizar a prática de exercícios com sete telas de TV de cinquenta polegadas pairando, suspensas, na minha frente. Uma com receita de carne maluca, outra com a guerra em Gaza, Ucrânia, Rio de Janeiro, tudo sendo transmitido ao mesmo tempo. Daí, essa manchete me pegou muito:
Seca histórica faz rio sumir em Manaus
Antes de ser - pra usar uma palavra da moda - “aesthetic”, toda essa ebulição ambiental, lembro de uns versos que uma vez escrevi sobre o rio da minha infância
Foi no meio do Rio Negro / devia ter sete anos de idade / de tão clara noite / todas as estrelas apareceram no céu / todas / e mais a Via Láctea / as praias de areia fina / os peixes embaixo da água / tudo refletia / eu estava deitado no chão de um pequeno barco / meu pai fisgou alguma coisa / gargalhamos do tamanho ridículo do peixe / nossa alegria genuína / até a fumaça de mais um foco de incêndio encobrir tudo
Fim do exercício.