Brasil, mostra tua cara
Tinha eu 17 anos de idade quando Vale Tudo estreou. Naquela época, enquanto jovem metaleiro, não ligava muito nem pra novela, nem pra televisão. Na real, não ligava muito pra nada, a não ser pro cheiro de um vinil novo da Hi-Fi Discos.
Mas, sim, a novela pegou muito. Novela boa é aquela que vira fato social e todo mundo comenta. Do neida, a qualquer hora, a qualquer momento, do elevador do prédio ao balcão da padaria, você poderia ser interpelado por qualquer ser humano e entrar num debate sobre alcoolismo, se inteirar de mais um golpe da Maria de Fátima, ou ser inquirido sobre quem matou Odete Roitman pelo meio da cara.
O que mais impressionou mesmo foi, como sabemos, o último capítulo. Marco Aurélio consegue escapar da polícia e foge do país em um jatinho particular. O vilão dá uma "banana" para seus detratores, enquanto o tema da novela, a música "Brasil" de Cazuza, George Israel e Nilo Romero toca ao fundo em um dos momentos mais icônicos da teledramaturgia brasileira.
Corta para 2025
Já faz um bom tempo que os 17 anos ficaram pra trás, a Hi Fi fechou e nem sou mais tão metaleiro como naquela época. Porém, de lá pra cá, me tornei noveleiro. Não por profissão, mas por hobby. Enquanto roteirista, nunca tive a chance de escrever novelas.
De qualquer forma, no contexto do audiovisual, sigo assistindo e acompanhando os remakes, reboots, sequências de franquias dos anos 80 e refilmagens de clássicos. O que me faz voltar ao meu guia favorito sobre essa tendência dominante da nostalgia como força criativa e o impacto disso sobre a música, a moda, o cinema e a cultura popular.
Lançado em 2011, Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past, de Simon Reynolds, é um livro que parte da música pop para fazer um diagnóstico mais amplo da cultura contemporânea: estamos obcecados com o passado, e essa fixação pode estar nos impedindo de imaginar qualquer futuro.
Reynolds se apoia em exemplos concretos para ilustrar sua tese. Ele fala sobre o retorno de bandas clássicas, como os Sex Pistols, Pixies, New York Dolls, entre tantas outras que apresentam discos marcantes na íntegra, as caixas monumentais de relançamentos — como os 28 CDs com apresentações do Sun Ra — e a internet como catalisadora dessa dinâmica: com o YouTube e plataformas de streaming, o passado está não só acessível, mas onipresente.
O autor não condena a nostalgia em si, nem faz um lamento saudosista. Ele reconhece que, em muitos casos, o diálogo com o passado pode ser inovador— como nos samples do hip hop, gêneros como jungle, gabber, trance ou as colagens do pós-punk. O que o inquieta, porém, é a repetição vazia: uma reciclagem incapaz de gerar algo novo.
Ele distingue o uso artístico da memória — como fazia Shakespeare ao reinventar antigas lendas — de uma “retromania” que apenas replica o já feito, com um apego quase documental e sem a distorção criativa necessária para tornar a obra viva.
A sensação de “estar no presente” é algo que, segundo ele, se perdeu. Em vez disso, temos um excesso de relançamentos, de remixes, de curadorias e de reverência. O mercado parece operar com base em capital afetivo e reconhecimento automático. É mais seguro reciclar do que arriscar. E, como sugere Reynolds, essa abundância de opções do passado paralisa a criação: artistas e produtores ficam tentados a explorar nichos esquecidos, micro-estéticas e arquivos obscuros, em vez de abrir novas trilhas.
Voltando a vaca quente, Vale Tudo de Gilberto Braga é uma obra-prima da teledramaturgia, uma trama que dialoga com dilemas éticos, o tal do “jeitinho brasileiro”, o “se dar bem”, a corrupção endêmica.
O crítico de TV Maurício Stycer, em sua coluna na Folha de São Paulo, sugeriu a autora Manuela Dias a não suavizar os temas da novela para evitar um remake "frouxo" como o de Renascer. Segundo Stycer, a nova versão de Vale Tudo deveria ignorar as expectativas do público que assistiu à versão original e radicalizar na atualização, incluindo, por exemplo, um núcleo bolsonarista. Hmmm…Será mesmo? Como todo bom noveleiro, sempre com as melhores saídas para as enrascadas da trama, tenho dúvidas. A não ser que terminem presos.
A seguir, cenas dos próximos capítulos.
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