Muitas coisas e estou em um bar na Cinelândia com minha amiga Susana Sontag. Ela começa…
- Como é mesmo a história da lápide do Bocage?
- Já te conto. Mais um chope?
- Bebi demais ontem. Mas pede, vai.
- Eu costumava ter um retrato do Bocage emoldurado.
- Já emoldurei vários escritores: Rimbaud, Florbela, Clarice. Na época, não era cringe ter retratos de poetas na sala. Ou era, mas ninguém sabia o significado de cringe e tava tudo bem.
- Poetas que se tornaram uma coleção de chaveiros.
- Sim. Olha, você precisa dar uma volta. Deve ser o calor, não tá te fazendo muito bem.
- Tá fazendo bem a alguém?
- Meus sais! Que azedume!
- Desculpa. Eu preciso mesmo me cuidar, senão é bem capaz de acabar que nem um dos personagens da série “Fim”, inspirada no livro da Fernanda Torres. Já viu?
- Eu não falei de você não. Falei dessa marola que subiu agora. Deve ser de algum bueiro entupido aqui perto. Sobre a série, já vi sim. É uma tragédia.
- Não, a série é boa.
- Eu sei. Nós estamos surdos? Tava falando da história mesmo. É uma tragédia. Os personagens são uns empertigados, vaidosos, covardes, desprezíveis, mentirosos mas tenho um pouco de cada um. Quem é você na série?
- Tô entre a Irene e o Álvaro. Não à toa eles se casaram.
- Me identifico com a impaciência dela.
- Eu me identifiquei com o Álvaro quando eles chegam da praia, ele vira pra filha e diz assim: “Filhinha, agora vai lavar o pezinho, tirar a areia, depois botar o pijama e dormir, tá?” Meio eu.
- Meio bundão o Álvaro.
- No final, fiquei com a sensação de que envelhecer é uma merda. Mas logo logo eu vou saber disso.
- Já não sabe? Praquele grupo de pessoas foi uma merda. Ou não foi. Algum vínculo eles tinham. Costumo chamar de amizade por milhagem. A pessoa vai ficando e você tem aquele apreço pelo tempo que a conhece.
- Eram bem íntimos. Os filhos ficavam pra lá e pra cá, na casa de um, de outro.
- Você quis dizer na casa da Norma? Ela praticamente vivia sozinha cuidando de criança. Aquele marido sádico ninguém merece.
- Ele se dizia sádico. Mas era um neurótico.
- Tinha boas frases. “Nunca mais seremos tão jovens”. Tá vendo? É sobre envelhecer.
- Tudo tem seu fim. Um grande amor. O emprego dos sonhos. Tudo acaba. Os Beatles acabaram. A democracia tá quase acabando. É o fim da aventura humana na Terra.
- Meu planeta adeus. Me conta da lápide do Bocage.
- Em um dos poemas, ele imagina o que estaria escrito na própria lápide: “Aqui jaz Bocage, o putanheiro…”
- “Comeu, bebeu, fodeu sem nunca ter dinheiro!” Lembrei!