Ainda estou aqui (pensando em Flow)
Uma animação da Letônia, um ator indiano e um poeta chileno
Minha primeira experiência sensorial pós-carnavalesca foi ir ao cinema com minha filha Helena, 6 anos, assistir Flow. A animação que veio da Letônia e ganhou um Oscar — assim como essa newsletter — revela a verdade com lirismo. O filme é, com todo respeito, uma porrada. A cena pós-créditos deixa um recado e um travo na garganta que me angustia até hoje. Confira na resenha logo após essas mal traçadas linhas introdutórias.
Por falar em porrada, essa semana assisti um filme que enquadro na categoria “deitando no soco mas com propósito”. Monkey Man é a estreia eletrizante do ator Dev Patel na direção e o couro come da primeira a última cena. Pra fechar essa edição porradeira, Poeta Chileno de Alejandro Zambra, um livro que trata de assuntos que, hoje em dia, vão interessar a uma meia dúzia de três ou quatro pessoas: poesia e paternidade. Recomendo fortemente.
Outras Considerações no ar! Vai que é tua!
1 - Flow
“Pai, olha! A Flow caiu na água de novo.” Sim, filha. Pela décima quinta vez. Talvez seja esse o nosso destino. As geleiras vão derreter, as águas vão rolar, o nível do mar vai subir até cobrir todo e qualquer vestígio de civilização e não restar mais nada além de um vastíssimo oceano. Pensei, claro. Só pensei. “Mas ela vai se salvar.” Comentei baixinho. Helena respondeu ainda mais baixinho: “Eu acho que não.”
A jornada de uma gatinha (também gosto de pensar que é “a” Flow), uma capivara, um cachorro e um lêmure em um mundo pós-apocalíptico, tomado pelas águas, sem nenhuma presença de seres humanos — quem sabe os responsáveis pela hecatombe — é a sinopse básica de Flow, direção de Gints Zilbalodis, da Letônia.
O ledor interessado já deve saber, mas Flow foi inteiramente desenvolvido com o Blender, um software de código aberto. Não sei exatamente o significado técnico disso, apenas kudos (parabéns) aos envolvidos. O impacto visual foi a sensação de estar dentro de uma linda aquarela que um dia, enfim, como diria Toquinho, descolorirá.
Para quem está cansado (eu) do ritmo frenético das animações atuais, a ausência de diálogos em um filme de classificação indicativa livre é um alívio e um incômodo ao mesmo tempo. Reforça a solidão dos personagens e desafia os espectadores, adultos e crianças em uma sala lotada a se perguntarem a todo momento que diabéisso.
Assim como na vida, alguns podem achar que essa foi uma escolha poética e envolvente; outros podem se sentir perdidos, esperando alguém aparecer e explicar o que está acontecendo diante de nossos olhos. Mas convenhamos, se até hoje não nos atentamos ao fato de que até os animais estão se virando e improvisando, do jeito que dá, nesse mundo cada vez mais submerso, estamos exatamente como no título do filme em português: À Deriva. Só foi preciso alguém desenhar pra gente entender.
2 - Monkey Man
Amigo ledor, venho aqui, por meio desta, confessar que nem só de Bergman, Coutinho e Lynch vive o homem. De vez em quando, gosto de me refestelar no sofá e assistir uma sequência bem filmada de socos e pontapés coreografados. A origem desse prazer culpado deve estar nos filmes de Bruce Lee de quem fui fã na infância. Cheguei a praticar Kung Fu. Até ser atingido por um um golpe que me fez voar uns cinco metros e na hora tive dor de dente, dor de barriga, uma crise de riso e de choro ao mesmo tempo. Coringuei legal e dei por encerrada minha breve carreira nos tatames da vida. No entanto, o amor pelo cinema porradeiro ficou.
Monkey Man (ou Fúria Primitiva) está em cartaz na Prime e traz na direção toda a versatilidade de Dev Patel (Quem Quer Ser Um Milionário, A Lenda do Cavaleiro Verde, Hotel Marigold, Lion) com a produção de Jordan Peele (Corra, Não Olhe, Nós). Essa combinação de talentos nos trouxe a história de Kid, um póbi movido pela vingança. Quando criança, testemunhou a morte da mãe, vítima de extrema violência, pelas mãos de Rana Singh, chefe de polícia e segurança de Baba Shakti, líder espiritual e religioso de grande influência nessa Mumbai fictícia.
E o filme é todo na perspectiva de Kid. No início, sua mãe, Neela, conta a história de Hanuman, uma divindade hindu meio homem, meio macaco, que chegou perto demais do sol, desafiando outros deuses. Kid incorpora essa divindade e a porrada estanca, fi.
Como a narrativa é centrada em Kid, alguns personagens secundários não são tão desenvolvidos, mas…quem se importa? A câmera pertíssimo dos atores, as sequências de GoPro e de smartphones deixam a história ainda mais visceral.
Enquanto busca vingança contra a elite ultranacionalista, Kid passa por experiências de quase morte e, em uma das reviravoltas, encontra abrigo em um templo dedicado ao povo Hijra, o terceiro gênero na Índia. Os membros do templo ajudam-no em sua transformação de lutador inexperiente a guerreiro valoroso, em uma clássica montagem de treinamento, aqui ao som de tabla.
Monkey Man não se propõe a "explicar" a divisão de castas na Índia. Em grossas linhas, o filme, assim como quase todo clássico da pancadaria nas telas, mostra como a opressão pode se transformar em raiva, vingança e superação. 10/10.
3 - Poeta Chileno
O Chile tem belas paisagens e bons vinhos, mas o melhor é a poesia. É a única coisa realmente boa.
Poeta Chileno é o quinto romance do escritor Alejandro Zambra, lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2021, com tradução de Miguel Del Castillo.
Dividido em quatro partes: "Obra Inicial", "Familiadrasta", "Poetry in Motion" e "Parque do Recuerdo". Conhecemos Gonzalo, um jovem fascinado por poesia que mantém um relacionamento com Carla. Após o fim do namoro, cada um segue sua trajetória, até que um reencontro anos depois dá início à segunda parte. Nesse momento, Carla já é mãe de Vicente, e Gonzalo passa a exercer o papel de padrasto, criando uma nova dinâmica familiar, a "Familiadrasta" e a conexão entre Gonzalo e Vicente se fortalece tendo a poesia como vínculo principal.
Durante todo o romance, são mencionados poetas reais (Nicanor Parra, Gabriela Mistral, Raúl Zurita) entre outros fictícios, enriquecendo a narrativa de referências à prestigiosa tradição poética do Chile, um país que celebra seus escritores, assim como por aqui celebramos nossos influencers e jogadores de futebol.
Exercício de poesia não dá dinheiro, mas prolonga notavelmente a juventude.
Caro ledor, caso tenha interesse em contribuir para a longevidade desta newsletter (10 reais mês/50 ano), a hora é essa! Ou até o próximo domingo!
to loooouca pra ver Flow. e amei Poeta Chileno. foi o primeiro do Zambra que li, depois fui atrás de outros, mas esse foi o que mais me pegou
(posso ver Flow ou vou sofrer? eu sofro com filmes em que bichos sofrem, prefiro não ver)