Hoje ainda perdura a tristeza com a iminente terceira guerra mundial, o julgamento da “trama golpista”, a possível prisão de um suposto comediante, o fim do namoro de Mocinha Duprat e Afonso Roitman na novela e o inverno que esse ano caiu em uma quinta feira. Sem falar no falecimento dos consagrados Sly Stone e Brian Wilson.
Porém, caro ledor, se nenhum desses assuntos rolou no seu feed, ou nem um mísero post de parecer técnico ou emocionado sobre a morte e o legado desses artistas, paz e benção no setor. Fique tranquilo que você chegou no lugar certo para essa resenha. Outras Considerações no ar!
Quem já foi sampleado por nove entre dez artistas de hip hop não quer guerra com ninguém.
Foi a mesma sensação com a partida de João Donato, Rita, Gal e Erasmo. Agora, com Sly e Brian Wilson, ambos com 82 anos (e nascidos com poucos meses de diferença), a sensação voltou. É como se, mais uma vez, eu tivesse perdido meus avós.
Conheci Sly e seu sorriso radiante em 1969, no Festival de Woodstock. Não pessoalmente, claro. Mas assistindo a apresentação avassaladora de soul, rock, R&B, psicodelia e gospel da banda Sly And The Family Stone em uma sessão lotada e enevoada do documentário sobre o festival, na Candido Mendes em Ipanema. Desde então, nunca mais nos separamos.
Sly vocal, guitarra e teclados, seu irmão Freddie, sua irmã Rose, a trompetista Cynthia Robinson, o baterista Greg Errico, o saxofonista Jerry Martini e o baixista Larry Graham. E aí? Vai encarar?
A energia e o otimismo que praticamente transformou a banda nos precursores do movimento hippie com “I Wanna Take You Higher”, “Dance to the Music”, “Hot Fun in the Summertime” e “Thank You (Falettineme Be Mice Elf Agin)” que retratavam a América esperançosa dos anos 1960, logo o primeiro sucesso do grupo, “Everyday People” (1968), era um chamado direto para o fim do preconceito e da divisão racial. Entrementes, foi com o monumental There’s a Riot Goin’ On de 1971, que sempre vai bem nos alto-falantes daqui de casa, eles encontraram um som mais introspectivo e lo-fi.
Talvez você conheça o maior hit do álbum: “Family Affair”. Essa música que, em 2002, gerou uma certa dor de cabeça pra Os Tribalistas (Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes), na época do lançamento do primeiro disco, por conta de uma acusação de plágio movida pela Sony Music (detentora dos direitos da música original) na melodia e andamento vocal da inolvidável “Já Sei Namorar”. Inspiração ou referência, não sabemos. Também não tive mais aqueles pique de correr atrás e saber o fim desse imbróglio que, aliás, não é nem de perto uma de minhas palavras favoritas.
Não vou entrar aqui na fase do perrengue pro Sly que durou bastante tempo em termos de abuso de drogas e outras noias. Aconselho demais que você ouça qualquer disco ou coletânea que tenha o nome Sly Stone na capa. Seu dia vai mudar. Pra melhor.
O que ainda me resta falar desse querido aqui? O da direita, é claro.
A revista Vulture lançou um artigo que traça um paralelo entre Sly e Brian Wilson que, em tradução livre, diz mais ou menos assim:
Os paralelos entre os dois artistas são, de certa forma, quase sobrenaturais: ambos foram aclamados como gigantes da composição muito antes dos 30 anos, quebraram fronteiras musicais com álbuns como Stand!, There’s a Riot Goin’ On, Pet Sounds e Smile, e enfrentaram resistência crítica quando lançaram seus trabalhos mais inovadores. Ambos lutaram para equilibrar suas próprias aspirações com as expectativas dos fãs, sendo descartados na mesma medida em que mergulhavam mais fundo em seus próprios processos criativos. Mas é no destino desigual que tiveram na segunda metade de suas carreiras — depois dos colapsos e dos períodos de reclusão — que suas histórias se separam, revelando as diferenças gritantes sobre o que significava ser um gênio negro e um gênio branco naquela época. Brian Wilson teve um período de anistia, fez música maravilhosa até a década de 2010; Sly tentou, mas nunca conseguiu se recuperar completamente.
Mais coincidências: Ambos os grupos se apresentavam como famílias, ambos chegaram ao auge absoluto com suas obras-primas do fim dos anos 60: Pet Sounds (1966) dos Beach Boys e Stand! (1969) da Family Stone. Álbuns que foram muito além dos limites do pop, do rock e do soul, e se tornaram altas referências até hoje.
A primeira vez que ouvi esse disco eu não entendi nada, fiquei completamente perdido em algum lugar entre a angústia adolescente e um indígena sendo aculturado.
Pet Sounds é a prova de que Brian Wilson é um gênio. Rótulo que, no fim das contas, não ajudou muito. O disco é uma fartura de excelência vocal, uma entrega de almas, um lindo sonho delirante e um fracasso comercial absoluto. Pra saúde mental de qualquer ser humano é desesperador. Pense na época. As gravadoras frustradas, pressão por ideias palatáveis e um público confuso, esperando musiquinhas que falassem de praias e piqueniques.
Se você tiver algum interesse em saber, de um jeito mais cinematográfico, sobre a vida de Brian Wilson ou de Sly Stone, recomendo dois filmes: O primeiro é Love and Mercy, por aqui intitulado The Beach Boys - Uma História de Sucesso (2014), uma cinebiografia (com Paul Dano e John Cusack) que retrata a vida de Brian Wilson, abordando dois períodos centrais: o auge nos anos 1960 e sua fase de recuperação nos anos 1980.
O outro é o documentário Sly Lives! (The Burden of Black Genius), lançado em janeiro desse ano pelo músico, baterista do The Roots e diretor Questlove.