Se Quincy Jones, em toda sua carreira, tivesse produzido apenas três discos: Off The Wall, Thriller e Bad, já seria suficiente para inscrever seu nome na história da música universal. Combinar por quase seis décadas e na medida certa, jazz, pop, R&B e cinema - primeiro produtor afro norte-americano a receber indicações ao Oscar por trilhas sonoras como A Cor Púrpura - não é simples e, na maioria das vezes, deve ser barril dobrado. É algo que nem se compara a escrever uma Newsletter toda semana.
Por isso mesmo, a prioridade de Outras Considerações é entregar qualidade e garantir a melhor experiência a você, caro leitor. Na edição dessa semana, mais um gigante se vai, mais uma tarde no Centro e mais uma queda da América. Enjoy.
1 - Quincy Jones
Em 2018, minha filha Helena veio ao mundo. O mesmo ano em que o Rio de Janeiro estava sob intervenção federal, o Museu Nacional pegou fogo, Lula foi preso e Marielle Franco foi assassinada. Entre um momento histórico e outro, eu seguia buscando uma janela de horário para assistir o documentário Quincy (Netflix), lançado na época, produzido e dirigido por sua filha, a atriz Rashida Jones.
Assisti o doc como assisto a qualquer coisa hoje na TV. De quarenta em quarenta minutos. E o filme durou um mês. Entretanto, um mês na companhia de Quincy Jones não é nada mal.
O filme é um retrato íntimo e multifacetado do lendário produtor, mistura entrevistas e cenas de bastidores. Esta que seria a tagline mais genérica possível de qualquer documentário musical, aqui serve apenas para indicar que é só uma primeira camada. Rashida segue para além da lenda musical e mostra seu pai como alguém que enfrentou diversas batalhas. Desde a infância, problemas de saúde e a dificuldade de equilibrar a vida profissional intensa com a família.
Afinal de contas, entre outras coisas, camarões boiavam na superfície da sopa e estamos aqui falando do idealizador do projeto We Are The World - USA For Africa. A canção beneficente que reuniu: Lionel Richie, Stevie Wonder, Ray Charles, Tina Turner, Diana Ross, Bruce Springsteen, Bob Dylan e mais uma ruma de artistas. Menos o Prince, que não foi, mas entrou no caderninho da vacilação.
Como numa letra de Jorge Ben: seu rigor musical, sua habilidade, sua calma e precisão, Quincy Jones, um ponta de lança decidido, desempenhou um papel essencial nesse projeto e, desde seu lançamento em 1985, a canção foi um dos singles mais vendidos de todos os tempos e se tornou ao mesmo tempo, um hino de solidariedade e uma assombração. Mais detalhes nesse documentário, também Netflix:
2 - Deambular
Mil graus no Centro do Rio. Apesar de e por causa do calor, eu e meu amigo Fernando Aragão, entre um não-job e outro, empreendemos o hábito de ir a lugares centenários da cidade. Em especial aqueles onde a conversa baixa e o café que se toma sem pressa não existem. Depois seguir em direção ao Mercado Popular da Uruguaiana, olhar as peças e barganhar artigos que não precisamos. Não exatamente naquela hora.
Um amigo se aproxima com alguns relógios. Disse que prefere vender mais barato, prefere perder dinheiro do que perder pra polícia. Outro, da barraca de óculos, se esgoela “Nunca vi gente tão dura! Vamo comprar, porra!”. Cinco amigos em cadeiras de praia, dividem uma cerveja por motivos de tá quente pra caralho ta lgd
Uns conversam “O VLT acabou com o Centro.” “Acabou?” "É, acabou. Já foi na Marechal Floriano? Aquela loja de louça de mais de cem anos, fechou.” “Fechou?” “Fechou, fi. Não tem mais onde estacionar. Como o cara vai comprar louça e voltar pro carro? Esqueça.” “Pra que eu vou comprar louça?” “Então, não tem como.”
Ruas estreitas, prédios altos onde começa e termina a cidade. Lembrei do Melodia
Giro a cidade sem juízo
Caminhe e se encontre, lá, comigo
Pois 'inda sou o seu amor
A minha blusa tem seu nome
Mas perto, bem perto da esquina
Onde o sol bate e se firma
3 - América
Ginsberg poderia ter sido escrito ontem, mas foi em 1956 que o poeta destilou toda sua decepção, vazio e impotência frente a uma nação dominada pela paranóia, consumismo e militarismo. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
América
América, eu te dei tudo e agora não sou nada.
América, dois dólares e vinte e sete centavos, 17 de janeiro de 1956.
Não suporto minha própria mente.
América, quando acabaremos com a guerra humana?
Vai se fuder com sua bomba atômica.
Não me sinto bem, não me incomode.
Não escreverei meu poema até estar em meu juízo perfeito.
América, quando será angelical?
Quando vai tirar suas roupas?
Quando se olhará através do túmulo?
Quando será digna dos seus milhões de trotskistas?
América, por que suas bibliotecas estão cheias de lágrimas?
América, quando enviará seus ovos para a Índia?
Estou cansado das suas exigências insanas.
Quando poderei entrar no supermercado e comprar o que preciso com meu charme?
América, eu costumava ser comunista quando era criança, não me arrependo.
Fumo maconha sempre que posso.
Fico em casa dias a fio, olhando as rosas no armário.
Quando vou a Chinatown, fico bêbado e nunca transo.
Minha mente está decidida: haverá problemas.
Você deveria ter me visto lendo Marx.
Meu psicanalista acha que estou absolutamente certo.
Não rezarei o Pai Nosso.
Tenho visões místicas e vibrações cósmicas.
América, ainda não te contei o que você fez ao Tio Max depois que ele veio da Rússia.
Estou falando com você.
Vai deixar que sua vida emocional seja controlada pela Time Magazine?
Sou obcecado pela Time Magazine.
Leio-a toda semana.
A capa me encara toda vez que passo sorrateiro pela venda da esquina.
Leio-a no porão da Biblioteca Pública de Berkeley.
Está sempre me falando de responsabilidade. Os homens de negócios são sérios. Os produtores de cinema são sérios. Todo mundo é sério, menos eu.
Me ocorre que eu sou a América.
Estou falando comigo mesmo de novo.